sexta-feira, 30 de julho de 2010

CAPÍTULO 18 – REFLETINDO A ROTINA

— Você disse que não conversamos seriamente sobre o assunto, mas toda vez que quero fazer isso você me deixa falando sozinho! O que está acontecendo, Fernanda?
— Eu preciso de tempo, Pedro! Tempo! Por favor, para de ficar martelando esse assunto porque...
— Esse assunto, não é um as-sun-to, é nosso filho!
— Não é nosso filho porque ainda não foi concebido. Estamos conversando sobre a possibilidade de ser um filho.
— Você fala disso como se estivesse tratando de uma de suas contas da agência.
— E você não está respeitando o tempo que te pedi, está, como sempre, tentando resolver as coisas passando por cima de mim...
— Essa não é uma questão só sua.
— Eu não aguento mais isso!!!
Virei as costas e fui tomar um banho.
De verdade não aguento mais. Acho que vou pedir o divórcio, ficar de uma vez por todas livre e ir viver minha vida longe dessa casa, dessas pessoas que me pressionam sem saber de nada!
As discussões que tenho com Pedro a respeito da gravidez já estão tão maçantes e repetitivas que já não me abalo como no começo. Sinto que estamos perdendo o respeito um pelo outro porque não me emociono mais, não me sinto mais afetada pelo que ele dispara contra mim, e são acusações cada vez mais pesadas, cheias de uma raiva que vai se enraizando... e eu sempre tento atingi-lo com mais força quando tenho oportunidade, por puro gosto. Minha vida antes monótona agora está se tornando um inferno.
Quando voltei para o quarto ele já estava dormindo, ou fingindo que dormia. Peguei um livro na estante e desci para a sala.
Desmoronei no sofá e fiquei olhando pela janela a vista privilegiada que eu tinha da cidade de São Paulo. Apoiada naquela visão eu fazia um levantamento do meu dia e de como queria que fossem os outros. Não dá mais para esperar, preciso tomar decisões, fazer alguma coisa para parar com essa autodestruição emocional.
Conversei com Júlio hoje, foi uma conversa legal.
Olha só como estou ultimamente: desabafando com meu personal trainer... Acho que encontro nele uma forte identificação, talvez por ele ser gay assumido, muito bem resolvido. Não que eu seja assim, tão resolvida... aliás, nada resolvida. Não tente se enganar, Fernanda, só estamos nós aqui nesta sala escura e vazia. Tenho que confessar claramente para mim que sinto inveja de Júlio por ter uma vida amorosa aberta com outro homem, por simplesmente não fazer da opinião dos outros um referencial para sua vida. Um homem alto, forte, moreno, completamente apaixonado pelo fisioterapeuta que conheceu numa dessas academias por aí... O fato é que estão juntos e felizes, e isso é admirável. Queria estar leve como ele, mas estava tensa. Logo pela manhã saí de uma reunião longa e cansativa numa universidade que contratou os trabalhos da agência. Conta grande, grande investimento que inclui ínfimos e sórdidos detalhes e exigências descabidas. Saí exausta e vim direto para casa malhar (para ficar ainda mais exausta?) para o segundo tempo da batalha. Júlio apertava meus ombros e dizia que eles pareciam uma pedra... e eu só queria que ele fizesse massagem o dia inteiro, sem a parte dos exercícios. Ele pegou mais leve hoje, conversamos mais e acabei contando que Pedro quer o filho/filha que eu não quero dar.
Depois de suar ele me deixou para encontrar seu amor e eu o deixei para tomar banho e almoçar. Pedro chegou, trocamos poucas palavras e saí de fininho para não correr o risco de pisar mais forte nos ovos – ultimamente eu pisava em ovos quando conversávamos –, não nos despedimos, fui direto para a agência receber uma candidata para a vaga de ilustrador de nossa campanha para a tal universidade.
Nos corredores pigarreei, esfreguei as mãos e preparei meu olhar decidido, a mulher das grandes estratégias... grande coisa... mas tinha que ser assim, as pessoas me conheciam assim: Fernanda, a profissional decidida, segura, vencedora. As aparências enganam, o teatro da vida é mesmo muito interessante.
Entrei na sala de reuniões e me deparei com uma morena linda, vestida em camisa e calça social, usando acessórios de bom gosto. Um colar, uma pulseira, brincos e unhas bem feitas... o perfume, o sorriso, a boca com batom... linda! Mostrou-me a mesma segurança que pretendi mostrar a ela. Mostrou-me seu teste e alguns trabalhos anteriores, todos muito bons, muito típicos dela. Ana Paula tinha traços característicos, artísticos, muito bonito seu trabalho. Apertamo-nos as mãos e combinamos o contrato.
Terminada a matança do leão de cada dia, voltei para casa. Entrei no carro e me lembrei de Clarice. Em algum momento do meu dia sempre penso nela, é automático. Se vejo uma bela mulher me lembro dela... pensei em Ana Paula, pensei em Clara. Olhei para minha bolsa, tirei meu celular. Fazia três anos que não discava aquele número, quase três anos porque tentei durante algumas semanas depois daquele dia. Sabia o número de cor... mas depois de ouvir tantas mensagens de número indisponível ou fora da área de cobertura, fiquei com medo de tentar mais e mais e mais uma vez, e ouvir sempre a mesma voz automática. O celular vibrou em minhas mãos e outro número me veio às vistas: era mamãe. Desliguei. Melhor voltar logo para casa.
Agora estou aqui olhando São Paulo tão silencioso daqui de cima, fora de minha cama, de meu quarto porque lá não me sinto mais à vontade. Algo precisa acontecer... para algo acontecer preciso fazer alguma coisa. Chega de esperar.

continua...

CAPÍTULO 17 – RETOMANDO A ROTINA

Dá preguiça acordar de um sono profundo e demorado. É como querer dormir novamente, mas o corpo grita porque não aguenta mais ficar deitado, precisa de vida, agito. Esse pensamento é metafórico. Hoje acordei com vontade de pensar em códigos.
Nunca fui de dormir, queria sempre estar nos lugares ou em alerta constante, porque o mundo não dorme, gira ininterruptamente, e eu queria fazer parte de tudo como arroz de festa. Mas aí veio a tragédia daquele horroroso atentado e tive que me aquietar até poder voltar ao meu pique de antes sozinha – não poderia obrigar os outros a viverem minha vida inquieta.
Demorei a dormir, noites e noites acordada correndo o mundo em pensamentos, agitada num pesadelo constante. Tive que conversar muito com a analista que há em mim até chegar à conclusão de que meu corpo não corresponderia a toda aquela angústia, portanto, nada mais poderia ser feito: teria de parar e recomeçar. Dormi mais de dois anos, transformei-me num monge tibetano, feições calmas, serenas, sorrisos ternos (dentro de mim havia um Tsunami)... esperei que tomassem decisões por mim, fizessem o que só eu poderia fazer. Tudo isso pacientemente, sem me desesperar, esperando a hora certa de ter minha independência de volta.
Sinto que chegou a hora.
Mesmo estando ainda com meus pés lentos e um tanto inseguros, o resto do meu corpo está disposto a ir adiante, e minha mente quer recuperar o tempo. Não que ele tenha sido perdido, realmente domei minha ansiedade e descobri em mim Clarices para todos os momentos, mas quero o tempo paralelo que não tive. Explico: antes eu fazia várias coisas ao mesmo tempo; durante três anos me dediquei exclusivamente à minha saúde física. Agora estou bem, quero mais, quero tudo que era meu de volta!
Certamente Fernanda influenciou minha dormência. Por um bom tempo achei que ficar quieta seria meu protesto, meu “luto”, porque o motivo da minha última e intensa alegria não estava mais próximo. Bom, fiquei mal, mas, agora, tanto tempo se passou que me cansei de ficar triste.
Eu queria Fernanda, quero Fernanda, mas preciso viver... enxergar vida lá fora e tentar ser feliz como fui naqueles dias na Espanha. Talvez não consiga porque alguns acontecimentos são mesmo únicos, mas tenho que tentar.
Será que aquele momento não era propício para meu amadurecimento amoroso? Juro que mudaria minha vida por aquela mulher elegante.
O destino me empurra para a galinhagem e, quando insisto em ser mulher de uma só, olha o que acontece?!
Vou cair no mundo novamente. Laís que me aguarde.
Hoje eu a verei. Ela quer tanto me ver... eu também estava começando a querer muito tê-la, ops!, ou melhor, vê-la.
Mas, antes disso, meu dia será longo.

7h. Acordei um tanto excitada com meus planos e com os exercícios de minha imaginação a respeito de Laís. Poderia ficar mais tempo na cama e testar como anda o nível da minha libido, no aspecto científico da experiência, claro. Mas teria que ir a uma entrevista de emprego. Isso é mesmo uma grande novidade e um estímulo para começar, a partir de hoje, uma nova etapa. Um emprego efetivo. Um possível trabalho como professora universitária. Quem diria... no tabuleiro da minha vida, eu estava voltando a mexer as peças.
Já me sinto totalmente apta a voltar para uma intensa rotina. Depois, vou em busca de minha bolsa de mestrado novamente. Talvez eu faça a pós-graduação aqui mesmo, para não ter que viajar de avião nunca mais.
Tentei falar com Nana para que ela tivesse a oportunidade de me dizer frases sinceras de incentivo, mas não a encontrei. Tive que me olhar no espelho e fazer eu mesma essa parte. Gostei da experiência de me ver bem diante de mim. Minha pele voltou ao normal depois de erupções vulcânicas chamadas acne terem-na invadido; meu cabelo estava sem corte, mas logo mais resolvo isso; meus dentes continuam brancos e acho que meus olhos voltaram a brilhar. Enfim, uma linda mulher, não do quilate da Julia Roberts, mas bonitinha, ajeitadinha, limpinha, inteligente... e ainda tem gente por aí querendo pegar!
Chega de narcisismo.
8h. Chamei um táxi que me deixou na frente da universidade. Peguei minha bengala e subi calmamente uma rampa que me levaria à portaria. Era a primeira vez que saía sozinha desde o acidente... e eu me sentia completamente segura.
9h. Fui indicada por uma amiga do mestrado, por isso a reunião foi relativamente rápida. A pró-reitora me fez uma proposta interessante: começar com uma grade reduzida no início, até eu desenferrujar, por um salário razoável. Conversamos sobre meu currículo e planos para o ano letivo entusiasmadamente e isso ajudou para que tudo desse certo. Talvez ela tenha ficado surpresa por eu não estar pensando em me aposentar por invalidez... tantas pessoas a fim de não terem o que fazer e eu com sede de trabalho... enfim, quase havia me esquecido de que existem na vida outras grandes paixões.
10h30. Saí de lá combinada a começar na próxima semana e, para comemorar, resolvi caminhar até uma livraria próxima para alimentar minha estante de novidades. Fiquei por lá curtindo a chance de estar, numa manhã de plena terça-feira, folheando livros, revistas, HQs descompromissadamente, num dia agradável de sol brando em céu azul. Rever o mundo sem estar acompanhada é enxergá-lo com outros olhos, sem a interferência das opiniões alheias. Essa situação me fez lembrar do primeiro dia que saí de casa sozinha, aos 12 anos... primeira vez que peguei o ônibus sozinha para ir ao shopping encontrar os amigos. Depois de todo esse tempo sendo levada aos lugares, sinto-me novamente livre e independente.
11h. Depois de reabrir as portas de meu universo paralelo com a leitura de textos diversos, corri para casa porque estava atrasada para minha seção de fisioterapia. Marcelo estava me esperando na recepção do prédio quando cheguei esbaforida, quase usando minha bengala como terceira perna.
— Hummm, estou vendo que a mocinha está bem atiradinha! – brincou meu fisioterapeuta e amigo observando feliz, mas com certa cautela, meus movimentos independentes.
— O atraso provoca a aflição que provoca a pressa que faz com que eu tente correr.
— Ainda não te aconselho as maratonas, mocinha. – segurou-me pelo braço e fomos juntos para o elevador. — É sério, Clarinha, não abuse para não cair... se quebrar mais algum osso, vai levar mais um tempão para consertar... você só chegou até aqui porque está indo com calma. – censurou-me com seriedade.
— Eu sei, Marcelo... vou tentar, só não aguento mais ficar em casa.
Abri a porta, larguei minha bolsa e fui vestir roupas apropriadas para ser amassada na fisioterapia.
Marcelo foi indicado pelo namorado, Júlio, que é meu amigo há décadas. Esse cara me recolocou na linha. Mesmo sabendo que esse é seu trabalho, sinto-me imensamente grata por ele recompor tão bem meu corpo. Tornou-se um grande amigo porque viu de perto meus momentos de dor e minha recuperação, Marcelo sabe dos meus assuntos mais íntimos, que não são tantos, nesse tempo de amizade.
— Vou me encontrar com Laís hoje. – confidenciei enquanto ele massageava meus pés e sorria maliciosamente.
— Ihhh, é hoje, minha donzela!!
— Não sei... mas acho que ando muito fácil ultimamente...
— Minha querida, você tem é que voltar a viver a vida, tem que voltar a gozar mesmo!! Vira de costas... – pediu para massagear meu ombro. — E vou dizer uma coisa, acho a Laís um mulherão... e é caidinha por você, todos que a conhecem sabem disso. Ela pode ser uma galinha, mas acho que ela pararia com essa biscatagem se estivesse com você.
— Você acha?! – pensei um pouco e virei-me para ele. — Não sei se quero isso, não sei se quero algo sério com ela...
— Você quer é voltar a vadiar também, não é?
— Talvez...
Depois de uma hora sentindo muita dor, fui salva pelo gongo: Júlio tocou a campainha e Marcelo saiu correndo para atendê-lo. Tinham combinado de irem às compras, como um casal satisfeito com a rotina que planejaram para si.
13h. Falei com meus pais por telefone. Nana me ligou em seguida para me dizer as frases estimulantes que eu procurava pela manhã. Conversamos um pouco e soube que ela teria que levar a uma agência algumas ilustrações que fez para uma campanha publicitária. Por coincidência, esta campanha seria para a universidade em que fiz entrevista logo cedo. Era um trabalho grande e minha amiga estava ansiosa com a possibilidade de divulgar seus riscos para um público maior. Dessa vez, fui eu quem disse os ditos estimulantes e de confiança para a autoestima de minha fiel escudeira.
14h. Liguei o computador para relaxar. Li algumas notícias do dia, respondi e-mails, entrei na minha página do orkut, fucei o perfil de alguns amigos e me veio a ideia de xeretar a vida exposta de Laís. Naquela página ela não era Laís, pois já era conhecida publicamente e não ficaria bem se expor como uma simples mortal numa rede de relacionamentos on-line. Para os amigos ela era simplesmente L. Li seu perfil com mais cuidado, depoimentos, recados de pessoas que sutilmente imploravam sua atenção. Tem uma lista imensa de contatos, mais de quinhentos. É possível uma pessoa ter mais de quinhentos amigos? Muito popular... Havia Simone, Kátia, Roberto, Antônio, Manu, Janaína, Nara, Luís, Jade... uma infinidade de nomes e rostos.
Ops! Telefone.
— Alô.
— Clarinha, é Laís.
— Nossa, estava pensando em você. – não sei se era bem isso, nem sei se queria dizer isso, mas estava com a página de orkut dela aberta em minha frente.
— Sério?! Estou ansiosa para hoje à noite. Já estou com a chave do galpão para irmos ver as obras.
— Te espero no horário combinado, então.
— Só liguei para confirmar. – sua voz estava mais sensual que o normal. Será que ela ligou para me atiçar ainda mais?
— Está confirmado.
Desligamos e fui direto para o chuveiro. Tenho que ter tempo de me preparar.
De repente, enquanto pensava em várias coisas durante o banho, inclusive no perfil de algumas pessoas, veio-me uma ideia: e se Fernanda tivesse um perfil?
Fiquei desesperada, angustiada, com a possibilidade de descobrir algo sobre ela por meio da internet. Mas, digitar apenas Fernanda não me levaria a lugar nenhum! Preciso me lembrar do sobrenome, do nome que havia naquele cartão.


continua...

sábado, 24 de julho de 2010

CAPÍTULO 16 – NÃO SE VIVE SÓ DE FLORES

Estava em crise declarada com Pedro.
Acho que com meus pais também porque fugia deles como o diabo foge da cruz. Sentia-me sozinha, sem ter com quem desabafar. Talvez pudesse conversar com alguém se o motivo da crise com meu marido fosse simplesmente a divergência sobre ter um filho. Mas não é só isso, essa crise sempre existiu e não é pontual, é complexa, acho que vem desde o momento em que o conheci para tentar despistar quem sou realmente. Em vez de ficar com aquela primeira garota que me excitou há oito anos, decidi começar o namoro com um homem, o homem com quem meus pais simpatizavam.
Quando ouço por aí conversas em tom de curiosidade e sarcasmo sobre pais de família que abandonaram tudo para viver com outro homem, sinto-me extremamente incomodada porque os entendo. Eles explodiram, não aguentaram mais viver a farsa... foram tentar ser felizes depois de tentarem anos a fio ser quem os outros queriam que eles fossem. Medrosos? Sim. Foram. Mas nunca é tarde demais para tomarem coragem, mesmo que para isso tenham que ferir profundamente pessoas próximas. É o preço quando já se foi longe demais.
Quando me via diante dessas conversas pensava: “eis uma integrante do bando aqui, disfarçada”. Como é difícil carregar todo esse peso sobre minhas costas, mas também sei que esse é o preço para quem prefere se acomodar na covardia.
Se eu me mantivesse firme quando voltei ao Brasil... se não tivesse ficado tão frágil e cedido às pressões de todos para que eu me casasse com Pedro. Se... se... se... minha vida é feita de “ses” que ficaram para trás, porque “ses” são possibilidades que se foram.
Sair disso agora? Dizer “não quero ter filhos com você porque não te amo o suficiente e, por favor, me dê o divórcio porque me sinto desde sempre atraída por mulheres” só me fará mais infeliz. Sentir-me livre para quê se não tenho ninguém do lado de fora da minha prisão me esperando. Prefiro continuar prendendo Pedro. É, aos poucos vou me dando conta de que sou uma verdadeira filha da puta egoísta.
Se ao menos eu me apaixonasse novamente... Provavelmente, se isso acontecesse, eu me libertaria de mim mesma.
Telefone.
— Alô.
— Fê? Laís, tudo bem?
Uma luz no fim do túnel.
— Oi! Estava pensando em você. – era como se estivesse mesmo.
— Ontem, lá no cinema, te achei abatida... aí pensei que aquela conversa que rolou no restaurante, sábado, tivesse alguma coisa a ver. Quer conversar?
Pensei por um instante nessa proposta repentina.
— Seria ótimo. Preciso mesmo dividir com alguém... mas hoje fico no escritório até às sete.
— Bom, hoje é segunda... – pensou. — Podemos nos encontrar para jantar, o que acha?
Mais um momento de silêncio.
— Ótimo.

Fiquei ansiosa. Pensar que teria Laís como confidente me deixava nervosa. Primeiro: ela não é minha amiga, apenas a conheci por meio de Gustavo e Pedro, então poderia concluir que ela é mais amiga de Pedro do que minha. Segundo: sinto-me atraída por ela. Confidenciar problemas íntimos é chamá-la para perto e não sei se quero mais problemas na minha vida. Mas, se pretendo me libertar, acho que preciso sair da toca em que me enfiei e voltar a enxergar o mundo, ir para a toca de outras pessoas interessantes.
Fui.
Escolhemos um restaurante calmo para que pudéssemos conversar em paz. Estava encantadora num vestido liso, preto, frente única. Seus cabelos estavam arrepiados com gel ou pomada, parecia que tinha acabado de sair do banho. Levantei-me, nos beijamos, nos sentamos e ela pediu bebida. Tirou um cigarro do maço, acendeu-o como fazem aquelas mulheres fatais e:
— Fiquei preocupada. Fui insensível... falei tudo aquilo e não percebi que vocês ainda não decidiram o que fazer sobre a gravidez. Desculpa, Fê.
— Imagina, não foi culpa sua.
— Quando a vi ontem no cinema sozinha achei mesmo que algo estivesse acontecendo. – tragou, bebeu e curvou-se um pouco mais sobre a mesa para que eu pudesse ouvi-la. Olhou-me nos olhos. — Sei que não somos amicíssimas, mas gosto de você. Acho você uma mulher inteligente, divertida, linda, agradável... – pausa para um pigarro dela e um riso sem graça meu. — Enfim, se quiser posso ouvi-la... se eu não puder fazer nada.
— Obrigada, Laís, você é mesmo um achado. Pensei que tivesse muitos amigos porque vivo rodeada por eles, mas nenhum me despertou a vontade de desabafar, de contar coisas íntimas. Não senti confiança em me abrir, me expor.
— Então posso me sentir lisonjeada... – sorriu com o canto da boca olhando-me intensamente.
Laís era um tipo ambíguo. Ao mesmo tempo que me parecia sincera, tinha a impressão de que havia uma intenção por trás de algumas de suas atitudes.
A quantidade de amigos e inimigos tinha o mesmo peso em sua balança. Alguns diziam que era dissimulada, que nunca dava ponto sem nó, que fazia muitos ex-amigos de escada para sua ascensão. Outros diziam que era uma pessoa batalhadora, perseguida, mal compreendida por ser ousada, fora dos padrões. Mas sua característica determinante é ser uma conquistadora assumidíssima, com orgulho. Ainda não tenho uma opinião sobre ela. O que vejo diante de mim é uma mulher perturbadora preocupando-se com meu problema, não sei se para o bem ou para o mal. Mas por que ela me faria mal? Achei superdelicado de sua parte ter me ligado para estarmos aqui agora.
— Obrigada por se preocupar. – comecei meio tímida a fim de observar melhor sua reação. — Acho que venho passando por uma fase difícil e, agora, os nervos estão à flor da pele.
— Imagino que deva ser difícil quando um casal diverge em questões delicadas. – tomou outra dose do uísque. — Mas só imagino porque prefiro ter minhas questões e resolvê-las comigo mesma.
— Nunca pensou em dividir questões com alguém? – continuei tentando dar uma de detetive.
— Só as imediatas, tipo: na sua casa ou na minha? – rimos um pouco da piada, mas ela se preocupava mais em ficar me observando. — Gosto de ter o controle sobre minha vida e, quando a dividimos com alguém, existem duas possibilidades: ou nos tornamos completamente responsáveis pelas duas vidas – se já não bastasse uma – ou perdemos o controle, ficamos a mercê do outro.
— É uma explicação bem didática... – comentei encarando-a a fim de que ela percebesse que não me intimidava. Mas intimidava.
— Pode ser, mas funciona. – ficamos um instante em silêncio. — Não quero criar uma situação embaraçosa novamente, mas, no seu caso, em qual das duas explicações didáticas você se encaixa?
Touché.
Realmente não sabia se ela queria me ajudar ou me espezinhar.
Mas, vamos lá.
— Talvez eu tenha afrouxado um pouco além da conta as rédeas da situação.
Ela continuou me olhando, pedindo que eu continuasse... e eu não queria me mostrar tão frágil. — Não quero ter um filho porque o que eu queria há três anos não é mais o que quero atualmente.
— E Pedro não está por dentro dessa mudança de planos... – concluiu como se fosse minha analista.
— É, mais ou menos.
Ficamos um instante em silêncio. Ela fumando e olhando ao redor e eu olhando para minhas mãos que seguravam a taça de vinho. Por mais que eu tentasse mostrar a segurança que todos dizem que tenho, meu medo transpirava e sentia-me pequena perto daquela mulher que soprava a fumaça do cigarro com tanta altivez, independência... E se eu confiasse nela?
— Acho que Pedro nunca esteve por dentro de nada que acontece comigo. Mas, não por culpa dele... culpa minha mesmo, que me tranquei, deixo que meus sentimentos e pensamentos íntimos fiquem só comigo. – dei outra risadinha sem graça, como os tímidos que acham que os outros não querem ouvir o que estão dizendo. — Desculpa, nem sei por que estou dizendo isso...
— Porque estamos aqui para isso... para que diga o que pensa, diga o que quiser.
— Por que está fazendo isso por mim?
— Já disse. Porque gosto de você. – apagou o cigarro com força no cinzeiro e olhou-me novamente com força. — Acho, sinceramente, que por trás dessa sua insegurança e medo de viver existe uma mulher bem interessante. Você não foi assim a vida inteira, não é? Estou falando alguma besteira?
Laís é bastante perspicaz, enxergava em mim muito do que os outros não viam.
— Não. Acho que fui perdendo as forças com o tempo... – ela estava me deixando confusa... e nua... porque começava, de maneira tão habilidosa, a desvendar em mim tudo o que só eu sabia. Só eu. — Não sei... não sei porque me rendi ao controle dos outros quando o que quero é tão diferente... tão simples...
— O que você quer, Fernanda?
— Quero liberdade para fazer o que eu quiser.
Permaneceu séria encarando-me sem piscar.
— Por que não toma as rédeas da sua vida novamente para ser livre?
— Porque não tenho o motivo para isso.
— Qual é o motivo?
Hesitei. Parei para poder pensar. Não conseguia mais raciocinar direito. Acho que o fato de estar colocando tudo para fora estava me deixando leve a tal ponto de perder o controle das palavras. Expor-me inteira em cima de uma mesa de restaurante para uma amiga metida à analista era forte... e eu quase sentia náuseas.
— Um amor. – lancei como flecha em fogo que ardia dentro de mim há três anos. Quem olhou com força agora fui eu e acho que era o vômito que faltava para que eu me tornasse forte novamente. — O amor por uma pessoa que conheci na Espanha e desapareceu. O motivo que eu tinha para jogar tudo para o alto não tenho mais.
Laís roeu uma das unhas ainda me observando um tanto perplexa.
Tempo para ela pensar...
— Nossa...
Foi o que ela disse.
— A perda desse amor fez com que eu me rendesse, que desistisse de viver porque não tinha um motivo, entende?
— Mais ou menos. Na verdade, acho que não. Mas... como você o perdeu?
— Laís... eu não O perdi, eu A perdi.
— Nossa...
Foi o que ela disse.
Deixou sua mão cair sobre o copo de uísque e sua expressão perplexa intensificou-se enquanto se ajeitava melhor na cadeira a fim de ouvir os detalhes que vieram depois.
Pois é, contei tudo, ou melhor, tudo o que eu conseguia dizer por meio de palavras. Recobrei, como num passe de mágica, a segurança que deixei lá no aeroporto, naquele 11 de março de 2004, às 8h da manhã em meio a vozes de alto-falante dizendo que eu tinha que partir sozinha – mais sozinha do que nunca. Conforme fui dizendo, aliviando minha alma, comecei a me sentir bem por explodir e abrir a ferida, a fim de deixá-la exposta para que outra pessoa a visse (de outro ângulo, de outra distância) e entendesse o motivo do meu ostracismo.
Laís escutou-me imóvel, deixou que eu falasse até que o silêncio determinasse o término da história.
— Nossa! Que história! – o cigarro tinha queimado em seus dedos. — Mas, passaram-se três anos, Fê! Você tem um número de celular que nunca atende. – silenciou por um instante me observando. — Já pensou na possibilidade de ela ter curtido muito apenas aquela noite e depois não querer mais nada. Não que você não seja atraente o suficiente para anos de desejo, não é isso, mas... algumas pessoas não gostam de se apegar...
Será que aquilo era um consolo?
— Não sei... pode ser. – não estava a fim de defender Clarice, pois... até pode ser que Laís tenha razão.
— Acho que você deveria conhecer pessoas... para voltar a se apaixonar.
Sem que eu esperasse, segurou minha mão e a apertou me olhando nos olhos. Acho que encontrei no seu olhar a impressão que tenho quando a vejo tão prestativa: “havia alguma intenção por trás de algumas de suas atitudes.” Mas agora, depois de ter me escutado, percebia algo mais, uma certa inquietação, uma névoa, uma sensação de reflexão naquele olhar. Parecia que ela estava digerindo tudo o que acabei de contar.
Não que isso, nessas circunstâncias, fosse totalmente ruim. Sentir sua mão quente sobre a minha acendeu meu corpo inteiro e, mesmo sabendo que Laís é uma galinha, talvez eu a quisesse beijar para sentir meu desejo voltar. Mas...
— Mas sou casada, Laís!
— E daí? Desculpa o clichê, mas, você não está morta.
— Não sou adepta da infidelidade como... – ops! Quase saiu.
— Como eu? – ela sorriu cínica.
— Você quem disse... – também fui cínica.
— Talvez eu seja a pessoa que te mostrará que há vida “pós-amor-español”. – disse com sotaque castelhano, ainda me observando com olhos insinuantes e sorriso cafajeste.
Eu apenas correspondi ao sorriso.
— Preciso ir. – chamei o garçom. — Muito obrigada por me ouvir, me sinto bem melhor.
— Estarei sempre à disposição. – piscou. — Mas, é sério, pode confiar em mim, posso ser um tanto dada aos prazeres carnais, mas sei guardar um segredo.

continua...

CAPÍTULO 15 – VIVER E SE DIVERTIR

— O que ela contou? – perguntou Nana assim que entrou com sacolas cheias de frutas, frios, pães e sucos para o café da manhã de domingo. — Vocês sempre têm tanto para conversar que fui embora.
— Ela finalmente fará a individual no Galpão das Artes e convidou-me para escrever sobre as obras. Quer que eu vá lá antes de todos dar uma olhada.
— Só você e ela? Sei... – piscou enquanto arrumava a mesa.
Nana sempre me disse que Laís tinha como meta me tirar desse jejum de anos. O pessoal dizia que eu havia me retornado virgem e apostavam em quem seria a “primeira” novamente. Laís encabeçava a lista. Na verdade, acho que já percebia nela um tratamento especial direcionado a minha pessoa antes mesmo de eu ir para a Espanha. Eu estava solteira, ela, aparentemente, também e talvez... Estudamos juntas, mas nunca fomos tão próximas. Na época éramos meio rivais: ela “pegava” as menininhas da parte sul da universidade e eu as da parte norte... tipo demarcação de território. Que bom que crescemos...
— Não pense besteiras, Nana... não quero nada com Laís.
— Você não precisa querer nada sério porque duvido que ela queira, mas poderia voltar a praticar com ela, não acha? – sentamo-nos. — Você não pode manter uma castidade até reencontrar Fernanda.
— Por que, não?
Nana mordeu a torrada abarrotada de requeijão, mastigou enquanto organizava as palavras para argumentar com firmeza. Eu a conhecia bem.
— Porque você pode demorar ainda mais a reencontrá-la. – colocou sua mão sobre a minha: — Clarinha, pode ser que ela esteja casada, ela estava noiva, não estava? Pode ser que ela tenha filhos, uma vida totalmente diferente. Pode ser que ela não sinta mais o que você sente... – Nana sempre me dizia as verdades mais doloridas.
— Sei disso. Mas, não sinto vontade de ter outra pessoa agora...
— Eu queria ter namorado você há sete anos com a cabeça que você tem agora... – riu me provocando. — Imagina você fiel e amorosa há sete anos... – do riso foi à gargalhada.
— Fui totalmente apaixonada por você e por suas pernas há sete anos.
— Sim, sim... eu atendi bem a alguns dos seus fetiches...
Daí em diante foram só lembranças de um namoro intenso, divertido e breve.
Nana foi minha..., ..., ... quinta namorada, talvez. Mas foi a única que não quis me matar quando concluí que não queria mais. Tornamo-nos amigas depois de algumas semanas de insultos e ressentimentos. Um dia nos reencontramos numa festa qualquer e declarei a ela, com toda a sinceridade do mundo, que a amava demais e faria um esforço enorme para ficar longe de suas pernas porque queria que fôssemos boas amigas. Nunca fui muito fiel. Na época eu queria tudo e não podia deixar as oportunidades passarem, e elas se postavam bem diante do meu nariz.
Ela foi uma grande e bela oportunidade de olhos castanhos, pele morena, cabelos cacheados e corpo escultural, sustentado por pernas ma-ra-vi-lho-sas. Nana foi minha obsessão por meses, até o dia em que a tive... e foi tão bom, mas passou, e quando passou eu a quis mesmo assim, como a tenho hoje. Nana é a pessoa mais bondosa que conheço, a única ex que não me virou as costas.
— Você poderia conhecer outras pessoas, não precisa conhecer mais a fundo Laís. – retomou o assunto enquanto me ajudava a caminhar até o sofá. — Clara, precisa sair, se divertir mais, você ultimamente fica muito aqui nesse apartamento enorme que faz eco quando a gente fala.
— Eu sei... mas não tenho vontade, acho que estou envelhecendo e ficando rabugenta.
— Nossa! Trinta e um anos é o ápice da gostosura, querida... ainda mais com a experiência que você tem.
— Será que eu ainda sei fazer?
— Tenho absoluta certeza de que sabe... e deve ter uma desesperada aí dentro querendo dar.
Acho que ando meio para baixo mesmo. Desde que saí – novamente – da casa dos meus pais e voltei a me virar, fico muito tempo sozinha, sem muito entusiasmo para fazer coisas das quais gostava antes do acidente. Não faço outra coisa que não seja fisioterapia, trabalhos rápidos como freela e pensar. Pensar demais faz mal, incha a mente de questionamentos insolucionáveis. Se eu tivesse um plano, se eu tivesse uma maneira de procurar Fernanda... Só um número de celular que não recebe ligações dela há três anos. Pensar, pensar... não me leva a nada, só reforça meu sentimento, minha frustração, ganho uma tristeza que não tinha.
— Bom, vou à exposição...
— Mas a exposição ainda é no próximo mês.
— Vou antes de todo mundo, esqueceu?
Ela abriu um meio sorriso safado.
— E quando será essa exposição exclusiva?
— Quando eu quiser.
Nana foi correndo pegar o telefone e voltou já discando o número de Laís.

Laís não estava mais atenciosa comigo à toa. Sempre houve uma vontade mútua de deixarmos a rivalidade para trás e provarmos uma da outra. Coisa de criança... ou de galinha mesmo. A questão é que, de uns tempos para cá, ela se dedica muito a encontrar maneiras de nos “esbarrarmos” por aí.
Pensando na possibilidade de me divertir e matar minha curiosidade, acho que não seria mal passar algum tempo com ela.
Acho que Nana está certa, preciso voltar à vida... não que eu desista de Fernanda, mas preciso estar bem quando a reencontrar. Preciso ver gente, voltar a pesquisar para ter minha bolsa de estudos de volta, trabalhar além dos trabalhos ocasionais, sei lá... sair desse tédio e parar de ficar me lamentando. Quero voltar a ser o que era antes. Fernanda me conheceu diferente do que sou hoje.
— Você tem razão, preciso dar uma agitada.
— Eu conheço a chama dos teus olhos. – sorriu. — Marcou? Quando?
— Na terça me encontro com Laís, mas se rolar um barzinho hoje, estou dentro.

Não rolou barzinho, mas fomos ao cinema. Fazia mesmo muito tempo que não ia a um shopping subir escadas rolantes e ver vitrines. Entramos em algumas lojas e compramos roupas, tênis e sapatos. Preciso usar calçados confortáveis porque, agora, o meu fraco são os pés ainda bastante desajeitados e doloridos. Minha bengala ganhou novos adesivos, virou mural para meus amigos.
Além de Nana estavam Luana, Marcelo e Júlio. Sentamo-nos num restaurante para beber alguma coisa e esperar o horário do filme. Conversávamos sobre a exposição de Laís quando ela e Gustavo chegaram. Mais um “encontro casual”? O chaveirinho inconveniente estava sempre por perto. Não gosto de Gustavo, sei que é inofensivo sozinho, mas simplesmente não vou com a cara dele. Prefiro ele e Laís separados, mas estão sempre juntos, e parece que, juntos, sempre estão tramando algo... conversinhas, risinhos, intrigas. Nunca me afetaram, mas não gosto disso. Minha relação com ele é estritamente profissional: de vez em quando ele me vende alucinógenos... e é só.
— Não acredito que essa belezinha saiu da toca. – exclamou Laís sorridente puxando a cadeira de outra mesa para se sentar próxima a mim. Deu-me um beijo estralado no rosto e vi quando Nana cutucou Júlio e sorriram.
Entreguei-me momentaneamente àqueles olhos azuis moldurados por rímel. Seu sorrido sempre aberto, aqueles cabelos sempre bagunçados que davam a ela um ar de menininha levada.
— Resolvi voltar à vida.
— Eu te ajudo voltar à ela.
Sorriu novamente e pediu ao garçom uma bebida. Laís é muito louca, acho que se droga bastante, mas isso não fica nítido, é um caso de viciada blasé, que jamais sai caindo do salto por aí. Gustavo, seu empresário sanguessuga deve cuidar para que ela não saia da linha em público.
— Comento sempre com Nana que você precisa voltar à velha forma de antes.
Ah! Comentou com Nana... Olhei para ela lá no outro lado da mesa. Estava conversando ao pé do ouvido com Luana.
— Sei que você passou por uma barra, mas... passou querida, passou.
É, passou. Olhamo-nos demoradamente. Senti uma onda de calor repentina e desviei-me de seu olhar. Lembrei-me do calor que senti quando olhei assim para Fernanda naquele avião e... não sei se queria sentir isso por outra pessoa. Mas, será que agora vou ficar reprimindo meus desejos a fim de não compará-los com meu sentimento por Fernanda? Preciso me libertar.
Fomos ao o cinema depois de algumas doses de cerveja. Compramos pipoca, refrigerante e tudo que é legal para se comer dentro da sala escura. Júlio empurrou Laís para meu lado e Nana cuidou para que Gustavo ficasse na outra extremidade. Em alguns momentos ela encostava seu braço no meu e me arrepiava. Achei engraçado isso, parece que voltei no tempo das primeiras sensações excitantes: encostar o braço, respirar perto da boca da outra ou do pescoço, falar pertinho do ouvido... tudo isso estava me excitando como se fosse a primeira vez. Acho que estava voltando realmente à vida, aos prazeres, às paixões momentâneas. De repente me deu uma vontade de beijar sua boca grande, convidativa... mas não fiz nada, só curti o toque entre as peles.
Quando tudo terminou e andávamos pelas laterais das cadeiras a fim de sair (eu atrapalhava bastante a agilidade da saída por conta dos meus passos lentos), perdi Laís de vista, só fui encontrá-la novamente lá fora.
— Pensei que tivesse corrido de mim... – arrisquei uma deixa.
— Imagina, linda! Fui apenas cumprimentar uma amiga que estava do outro lado da sala. — Não vou deixar você escapar. – cochichou baixinho no meu ouvido e piscou. — Posso deixá-la em casa. Aliás, primeiro deixo Gustavo em casa e depois te levo para a minha, o que acha?
Rápido demais.
— Não... acho melhor você ir para sua casa e eu para a minha com Nana. Mas nos vemos na terça. – Laís me encarou em silêncio por alguns instantes antes de sorrir maliciosamente e fazer um sinal afirmativo com a cabeça.
— Posso te pegar às seis.
— Claro. Te espero.
O pessoal ainda queria esticar para um bar, mas achei melhor não ir. Muita calma, eu ainda estava voltando, mas em doses homeopáticas... a sensação ainda era estranha, parecia que eu agredia a “memória” de Fernanda voltando a viver plenamente. Sentia-me mesmo como se tivesse enterrado Fernanda, que tudo que fizesse de prazeroso fosse “in memorian”, e isso me atormentava. Mesmo sabendo que nada daquilo foi realmente culpa minha, outro lado do meu ser teimava em me fazer culpada... Não sei explicar. Como se, se eu me divertir estarei esquecendo Fernanda e estarei apagando tudo o que passamos juntas naquele dia.
Algumas barreiras haviam se levantado em mim, provavelmente culpa da minha fragilidade, insegurança, baixa autoestima durante o tempo em que estive na cama, na cadeira de rodas, enfim. Tenho que reconhecer que senti medo de, por uma peça do acaso, encontrar Fernanda e ela me ver daquele jeito. Apavorava-me a ideia de ela sentir pena de mim, me vendo feia e tão diferente daquele dia em que nos encontramos. Há três anos meu medo era maior que a vontade de encontrá-la, mas, agora, que estou muito melhor, bem com minha nova condição, posso investir tudo o que tenho e posso nessa busca.
Claro que estou diferente, mas meu amor não mudou. Claro que sempre terei essa bengala me acompanhando e claro que não poderei mais correr na esteira da academia, nem andar de bicicleta, mas voltei a ser forte, divertida, bonita e sem modéstia. Estou pronta.
Vou contratar um detetive, sei lá!
Vou colocar minha criatividade para funcionar!
Mas, agora, melhor eu ir dormir.

continua...

domingo, 18 de julho de 2010

CAPÍTULO 14 – ENQUANTO ISSO...

Era começo de outono.
Chovia aquela garoa fina, fria, que dava vontade de ficar em casa assistindo filme que não exigisse nenhum esforço mental, comendo um balde de pipoca. Escurecia e resolvi me aprontar para o jantar.
Pedro fez reserva num restaurante de São Paulo. Já imaginava o caos numa fila para guardar o carro. Sábado. Paulistano sente necessidade de fazer um programa no fim de semana só para provar que não está trabalhando. Certamente, se eu ficasse em casa embaixo de cobertas, aproveitaria para ler alguns relatórios com o note sobre o colo. Bom, o que as outras espécies humanas não sabem é que muitos paulistanos saem no fim de semana também para falar de trabalho. Este é o caso. Pedro quer fechar um negócio com uma artista amiga nossa e decidiram tratar disso num lugar informal, sem tensão. Ok.
Meus pais queriam que fôssemos almoçar com eles amanhã, mas dei uma desculpa qualquer porque ultimamente há um assunto que persiste em todos os nossos encontros, e está me incomodando: gravidez.
Mamãe e papai querem um neto.
Pedro quer um filho.
Fernanda não sabe se quer.
Evito bastante essa conversa, mas sinto que pouco a pouco o cerco vai se fechando. Driblo meus pais, mas Pedro está muito próximo e começa a querer conversar seriamente sobre isso.
— Oi, querida! Já está pronta? – acabou de chegar correndo da chuva, com alguns pingos grossos no casaco. Eu ainda estava de pijama.
— Quase.
Caminhei preguiçosamente para o banheiro.
Ultimamente ando bem preguiçosa nos fins de semana. Durante os dias úteis não tenho tempo de ter preguiça porque o trabalho exige muito da minha atenção, mas aos sábados e domingos não me sinto estimulada em fazer muita coisa.
Tédio?
Acho que sim. Fico me perguntando o que move nossa vida: trabalho, família, amigos... amor (está em último na minha lista... Posso considerar-me frígida?). Preciso de felicidade mais constante. Um filho me trará felicidade? Deus do céu, não posso cair nessa! Depois só ficam faltando cachorro e quilos de chocolate. Não posso suprir meu tédio dando à luz uma criança! Que monstro egoísta eu seria.
A necessidade de ser mãe não me vem. Já não deveria ter vindo? Assim como a primeira menstruação, o primeiro beijo, a primeira transa... Para tudo não há um momento? Sou mulher, teoricamente com o instinto maternal natural em mim. Meu momento de querer ser mãe não chega e acabo fracassando na minha obrigação de mulher-esposa-mãe-procriadora-da-espécie. Céus, o que é isso?
Até quando vou deixar outras pessoas regerem minha vida?
— Amor, já está pronta?

— Queria tê-lo como fotógrafo da exposição. – dizia Gustavo com gestos largos, arriscando queimar alguém com o cigarro entre os dedos. — Você é um cara sensível e é meu amigo, ninguém melhor que você para registrar o evento. Quero foto nos melhores jornais.
— Claro que faço as fotos, mas acho que preciso conversar com...
— Olha ela aí! – levantou-se Gustavo a fim de puxar a cadeira para a artista do momento.
Laís é uma mulher perturbadora. Perturbadoramente atraente. Beleza exótica... um queixo quadrado que não combinava muito com a boca grande e o nariz fino, pequeno e arrebitado, mas o conjunto era perfeito. A altura, o corte curto de cabelo, que o deixava propositadamente despenteado, o modo como se vestia impunha uma curiosidade por parte das pessoas, dava a ela a liberdade de ser quem quisesse ser. Mas, mais que aparência, ela tinha uma personalidade, um gênio, um temperamento – sei lá o nome que dão para figuras complexas – forte e misterioso. Talvez por isso fosse artista... seu comportamento, suas atitudes eram livres e suas obras eram assim.
Apesar de não sermos amigas e só ouvir o que algumas pessoas diziam a seu respeito, nos conhecemos há algum tempo, talvez três, quatro anos. Gustavo é seu amigo-empresário-agente-secretário, que é amigo de longa data de Pedro. Os dois artistas começaram juntos: Pedro com a fotografia e Laís com as artes plásticas. Os dois se deram bem, mas Laís, agora, vivia um momento especial: faria sua primeira exposição individual. Estava eufórica, ansiosa, e por isso ficava ainda mais... poderosa, excitante.
Atração?
Sim. Sinto-me atraída por sua beleza e força. Óbvio que também por saber que ela é bissexual. Mas nada que me faça perder a cabeça... acho. Às vezes sinto falta do corpo feminino, das mãos, do toque, do beijo, dos seios, da cintura, do quadril... Mas não tive outro toque que não fosse o de Clarice, e é desse especificamente que sinto falta. Qualquer outro corpo de mulher sobre mim seria apenas uma tentativa de suprir a falta que ela me faz.
— Como vai, Fê? Estava com saudades.
— Eu também, querida! Faz tempo que não nos falamos. – conversamos amenidades por algum tempo até que Gustavo nos puxou para o verdadeiro objetivo do encontro.
Ficaram acertados que, dali a um mês, Pedro fotografaria a exposição num coquetel oferecido apenas para amigos e profissionais da área. Eu assistia àquela conversa com uma simpatia meio indiferente, reparando em Laís, Gustavo e Pedro, nas pessoas ao redor, no lugar. Não me excluíam da conversa, mas ela não era minha. De qualquer forma, notei que Laís estava sempre me observando com um riso escondido no canto da boca, e por isso era interessante estar ali.
Quando o assunto da reunião acabou fizemos um breve silêncio, tomamos mais um gole de nossas bebidas, Gustavo e Laís acenderam mais um cigarro e:
— E então, Fernanda, como vão as coisas? – perguntou Gustavo arrumando-se na cadeira.
De repente me liguei que não tinha muito o que contar. Foi chocante quando abri as gavetas em mim e não encontrei nada de interessante para mostrar. Deprimente. Acho que estou mesmo ficando deprimida... levando uma vida vazia.
— Bem... – sorri, afinal ninguém sabia do monte de pensamentos complexos sobre minha existência que eu estava tendo naquele exato momento. — Nenhuma grande novidade. – terminei batendo os dedos sobre a mesa.
— Pedro contou que vocês estão pensando em ter filhos... – declarou Laís deixando aquele sorriso escondido sair, suas pernas estavam cruzadas e suas coxas estavam à mostra, a taça de vinho suspensa a caminho da boca.
Olhei de canto de olho para Pedro, que me observava incomodado.
Filho da mãe! Nós nem conversamos a respeito e ele já está espalhando para os amigos. Senti meu sangue ferver. Não sabia o que responder, mas não poderia aceitar aquilo pacificamente, não poderia engolir mais aquele sapo sem reagir.
— Na verdade, não conversamos seriamente a respeito. – respondi encarando-o enquanto seu rosto enrubescia.
Laís e Gustavo se olharam rapidamente. Laís bebeu do vinho observando a vermelhidão de Pedro e Gustavo soprou a fumaça do cigarro com força para cima.
Outro silêncio, outro gole, outro trago. Tempo para Pedro reagir.
E reagiu:
— Pois é, não conversamos seriamente sobre isso, mas acho que é o passo natural quando um casal está bem e deseja formar uma família... – seu rosto continuou vermelho, mas agora acho que não era por conta do embaraço.
— Perpetuar a espécie. – completou Gustavo tentando ser divertido, mas conseguindo apenas ser irônico.
— Sinceramente, acho isso uma besteira. – completou Laís com seus rompantes habituais sem reparar nas expressões faciais que a rodeavam. Fez sinal para o garçom e continuou: — Hoje em dia... nesse mundo caótico. Não sei se quero um filho meu por aqui, não tenho um espírito materno que mantenha uma criança na linha por muito tempo... e eu teria de mantê-la o máximo que eu conseguisse, para preveni-la desse monte de estupidez, teria de ter muito tempo para explicar que ela não pode se transformar numa boba. É muito difícil... Os casais não podem apenas ser felizes?!
— Também acho isso. – concordei enfaticamente. Até aquele momento nunca tinha exposto minha opinião, apenas me esquivava, mas, agora, depois daquela afronta, meu sangue ainda estava quente e tinha vontade de bater em Pedro. Se não bato com minhas mãos, bato com palavras: — Vivemos outros tempos. Pensar que só porque somos um casal temos que ter filhos... um pensamento tão retrógrado.
— Não vejo assim. Acho que é um caminho natural... um homem e uma mulher se casam e querem ter um filho para criarem juntos. – debateu Pedro cada vez mais nervoso... tentando disfarçar.
— Gays podem ter filhos, então não seja tão pragmático quando diz “um homem e uma mulher se casam...” – polemizou Laís começando a gostar da conversa.
— Quis dizer, ter filhos pelos meios naturais: homem insemina, mulher engravida e dá à luz.
— Essa é a única maneira de ter filhos? Um casal de gays não pode adotar uma criança e educá-la, e tê-la como filha?
— Pelo amor de Deus, não é essa a questão! Não estou falando de gays e de heteros, estou falando na possibilidade de EU e MINHA esposa termos um filho.
— Mas parece que Fernanda não está muito convencida disso. – Gustavo sempre se divertiu com esse tipo de situação. Seu papel sempre foi alimentar a fogueira.
— Só não me senti confortável de Pedro ter dito que pretendemos ter filhos sem, ao menos, discutirmos seriamente sobre isso. – resolvi lavar a roupa suja porque estava realmente explodindo. Ele fechou a mão sobre a mesa, suspirou olhando para cima, como quem pede calma a um deus das pequenas causas.
— Pensei que fosse seu desejo também.
— Acho melhor irmos embora, Gustavo. – Laís finalmente se tocou que rolava uma discussão de casal ali. Também colocou lenha na fogueira, mas me ajudou.
— Desculpa, Laís, não foi minha intenção...
— Não me peça desculpas... acho que vocês devem conversar a respeito. Eu quem fui distraída em tocar nesse assunto... mas, como deveria saber...
Gustavo fez sinal para o garçom, cancelou a bebida que Laís tinha acabado de pedir e fechou a conta. O silêncio, que no decorrer do encontro era apenas para beber e fumar, tornou-se embaraçoso, pois o clima ficou pesado, nem eu nem Pedro queríamos falar e Gustavo e Laís queriam falar de nós quando virássemos as costas.
Entramos no carro irritados. Era como se uma bomba fosse explodir quando um de nós começasse a falar. Ficamos assim até o primeiro farol vermelho.
— Que estúpida toda aquela conversa. – comentou Pedro tentando dar à sua voz um tom mais calmo, acompanhado de uma risadinha forçada. Eu não estava calma e só esperava ele começar para detonar a bomba.
— Estúpido você, que contou uma falsa novidade a eles.
O farol abriu e ele continuou parado. Seu rosto voltou a avermelhar.
— Não entendo você, Fernanda! Estamos há mais de dois anos juntos e você sabe que eu sempre quis ter filhos... e você também queria antes de nos casarmos!
— Pode ser que eu não queira mais. Só acho o cúmulo da indiscrição você ficar falando sobre nossa vida sem antes a resolvermos entre nós!
As ruas estavam desertas, um carro passou por nós em alta velocidade e buzinou, só então Pedro deu partida e chegamos em casa em novo silêncio. Deitamos sem nos dar “boa-noite”.

continua...

EVENTO NA LIVRARIA DA VILLA - 10 ESCRITORAS DE LITERATURA LÉSBICA

Oi, meninas!


Tudo bem?
Dessa vez venho convidá-las para um evento em que sou mais TIETE, FÃ, do que escritora.
Estar numa mesa junto a escritoras tão talentosas, pioneiras da literatura lésbica moderna é mesmo DEMAIS!

Programem-se e apareçam. Vai ser muito legal.
Beijos!!


Lésbicas: 10 escritoras brasileiras


Em agosto, dia 28, sábado, a partir das 17h30 na Livraria da Vila da alameda Lorena, 1731, São Paulo, vamos promover o encontro de nada menos do que 10 escritoras lésbicas. É para todos os gostos: mocinhas, moçoilas, sérias, gozadoras, com vários livros, com o primeiro no prelo... mas todas lésbicas e todas envolvidas com a escrita dirigida a nós. Vai ter até uma palhinha da Renata Pallottinni!
Veja a deliciosa variedade de mulheres inteligentes (em ordem alfabética) que comporá o fórum sobre as possibilidades de nossa literatura:

Adriana Agostini, autora de Lésbicas na TV – The L Word, breve lançamento pela Editora Malagueta.
Bertha Solares, que publicou dois livros pela Editora Brasiliense: Um ano, dois verões e Dores, amores e pincéis. E numa produção independente do Clube dos Autores: Cidades e destinos.
Drikka Silva, autora de Glamour, livro no prelo pela Editora Malagueta.
Karina Dias, autora de Aquele dia junto ao mar pela Editora Malagueta, um dos grandes favoritos das leitoras
Lúcia Facco, autora de As guardiãs da magia, pela Editora Malagueta; Era uma vez um casal diferente, pela Summus; As heroínas saem do armário: literatura lésbica contemporânea, e Lado B: histórias de mulheres, pelas Edições GLS.
Mariana Cortez, que também tem um original no prelo pela Editora Malagueta.
Naomi Conte, autora de A livraria da esquina pelas Edições GLS.
Stella Ferraz, autora de três obras de temática lésbica publicadas pela Editora Brasiliense: Preciso te ver, Pássaro rebelde e A vila das meninas.
Valéria Melki Busin, autora de dois livros muito queridos pelas leitoras, publicados pelas Edições GLS: O último dia do outono e Lua de prata.
• E quem prometeu dar também uma palhinha no evento, muito nos honrando com sua presença, foi a poeta e dramaturga Renata Pallottini, autora de importantes trabalhos para teatro e televisão, entre os quais Vila Sésamo, Malu Mulher e Joana.
Dá para perder?

Lésbicas: 10 escritoras brasileiras
28 de agosto, sábado, a partir das 17h30
Livraria da Vila loja da Lorena
Alameda Lorena, 1731, Jardins,
São Paulo, SP, fone (11) 3062-1063

terça-feira, 13 de julho de 2010

CAPÍTULO 13 – QUASE O PRESENTE

Três anos se passaram desde aquele dia.
Muito tempo perdido sem saber o que teria sido se eu conseguisse chegar ao aeroporto. Tudo suspenso. É isso que sinto. Parou e acho que ficará estagnado até eu a encontrar de novo.
É, eu ainda não desisti de encontrá-la.
Minha vida jamais voltará ao normal se eu não encontrá-la para dizer que não foi culpa minha nossa vida ter mudado tanto, não causei o estrago, foi aquele atentado imbecil que me impediu de chegar até ela, foi ele que quase me deixou sem corpo, sem os movimentos que dizem quem sou, por causa dele minha vida tomou outro rumo e objetivo: ficar bem fisicamente (este é o rumo) para encontrar Fernanda (este é o objetivo). Tudo o que faço desde que voltei a pensar e lembrar é por Fernanda... e por mim, claro: encontrá-la e dizer que continuo planejando sobre nós. Claro que ela pode não acreditar em mim (mas talvez fosse uma postura incoerente, pois ainda tenho como provar o desastre... a bengala que me apoia é uma boa prova), dizer que é tarde, que muito tempo se passou, que não dá para voltar atrás, enfim... Pode ser que ela não queira mais me ver depois de conversarmos, mas terei feito o possível, o que estivesse ao meu alcance para tê-la de volta. Se não conseguir recuperá-la, voltarei a viver de um jeito diferente do que espero, mas voltarei a viver porque esclareceremos tudo. Assim espero.
Estou quase recuperada. Meio manca ainda, meu pé esquerdo, depois de infinitas seções de fisioterapia, ainda permanece sem a força necessária para me sustentar. Adquiri uma bengala simples, toda mimosa, para que eu não pareça doente.
Ninguém melhor do que eu para avaliar o avanço. Meus pais e amigos estiveram comigo, mas a dor era minha... e a vontade de voltar a andar e segurar com firmeza as coisas com as mãos também é minha. Se não fosse pelo rumo que decidi dar à minha vida, talvez levasse o dobro do tempo em me recuperar... talvez não me recuperasse nunca mais... mas não é o caso.
Depois que tive consciência de minha situação (entubada, comunicando-me apenas com os olhos e sem força nos membros), centrei-me em permanecer lúcida, pois precisava, antes de mais nada, voltar para o Brasil.
Fiquei na casa de meus pais por quase dois anos. Minha mãe largou tudo, carreira e estudos por minha causa, foi minha enfermeira, cozinheira, motorista... tudo, ela fez tudo por mim quando eu não conseguia fazer nada. Meu pai gastou até as tampas para me pagar fisioterapeutas, remédios, alucinógenos (bom, os alucinógenos ficaram por minha conta). Meus amigos me traziam jogos, papo-furado e alucinógenos (eles me traziam a lucidez de que eu precisava para esquecer).
Fiquei na cama durante meses sem movimentos, emagreci, perdi massa muscular, minha pele ficou horrível, fiquei feia. Minha mente permaneceu sóbria, mas, por alguns momentos, surtava e chorava porque achava que jamais conseguiria ir ao banheiro sozinha. Tomava remédios para dor e um dia decidi que não os tomaria mais porque nenhuma dor era maior que a que eu sentia por não ter alcançado Fernanda naquele dia.
Nunca pensei que fosse me sentir assim.
Em outros tempos (ou se não fosse um sentimento verdadeiramente forte e inédito) eu já a teria esquecido. Talvez, depois de algum tempo lúcida, até achasse proposital o desencontro... já tínhamos dormido juntas, já tinha tido o que queria, não precisaria enfrentar o embaraço de dizer que uma noite bastou.
Mas não bastou. E o desencontro foi como o rompimento de uma ponte em mim, a continuidade da minha vida amorosa está ali, parada sobre a ponte rompida. Se avanço agora caio no abismo do desconhecido novamente, sem a perspectiva de encontrar alguém como Fernanda. Talvez eu tenha que me jogar, caso nunca mais volte a vê-la.
Sempre me joguei no desconhecido e conheci pessoas e transas interessantes, mas Fernanda fez com que eu quisesse conhecê-la, quisesse um caminho menos instável, obscuro... sei lá. Só sei que o que aconteceu foi forte e não consegui contar a ninguém.
Nunca tive problemas em contar minhas aventuras e paixões avassaladoras.
Acho que por isso não contei dessa vez, porque para meus amigos pareceria mais uma aventura, mais uma paixão que sinto desesperadamente e, logo depois, passa. Não é só isso, não é simples. Preciso encontrar Fernanda para emendar a ponte rompida em mim. A única coisa que fiz, assim que tiraram aquele tubo miserável de minha garganta foi – depois de acostumar-me com a ideia de que eu ainda tinha voz –, pedir para minha mãe que me comprasse outro celular com o mesmo número do anterior, que foi destruído no metrô. Ela conseguiu, mas já havia passado mais de um mês. As chances de Fernanda me ligar certamente tinham diminuído 50%... depois me convenci de que diminuíram 100% porque não recebi nenhuma ligação de um número desconhecido que me fizesse pensar que era ela.
Enfim...
Fui para a cadeira de rodas. Meus amigos sempre me empurravam, literalmente, para as baladas e eu gostava, me divertia, bebia e esquecia um pouco a dor e minha péssima condição. Nos dias em que acordava com vontade de sentir dó de mim mesma eu alucinava (alucinógenos) para esquecer um pouco minha vida e depois dormir por horas seguidas.
Perdi a bolsa do mestrado. Depois de algum tempo comecei a pegar uns freelas, tirava uma grana e não enlouquecia. Voltei a mexer os dedos e a digitar, voltei a comer sozinha, a folhear livros sozinha, discar números de telefones sozinha.

— Desde que voltou para o Brasil, você está estranha...
— Não me diga... na verdade, desde lá, acho que estou meio torta...
— É sério, Clarinha. Não sei explicar, mas não é no aspecto físico... mas, também não sei dizer se foi por tudo que você passou... esses meses, anos de tratamento intenso, essa loucura toda. – Nana era minha amiga, muito amiga a ponto de decifrar alguns de meus pensamentos e sacar meu estado de espírito. Não tinha contado para ela o que aconteceu antes do acidente. Não sei por quê. Provavelmente porque nada do que eu dissesse faria com que ela entendesse o que sentia... mas acho que, mesmo assim, agora precisava de alguém que me ouvisse. Nana, naquela manhã, me analisava com mais detalhe, me pesquisava calada, pensativa; tragou o cigarro, pensou um pouco mais... — Essa coisa de você não desgrudar desse celular, como se esperasse uma ligação a qualquer momento... toda vez que ele toca você fica pálida! – tragou. — Quer saber, acho que aconteceu alguma coisa lá na Espanha...
Vou contar.
— Tenho esperança de que alguém ligue.
Nana abraçou as pernas sobre a cadeira e inclinou-se curiosa, prestes a desvendar o grande mistério.
— Depois de tanto tempo?
— Pois é, fui meio lenta, mas agora que estou melhor decidi encontrá-la.
— Encontrá-LA? Encontrar UMA pessoa ou UMA mulher? – levantou-se da cadeira e aproximou-se do sofá em que eu estava sentada. — Desembucha, Clara, fala logo sobre o que te atormenta!
Contei. No começo ela achou a história engraçada e me olhava como quem dizia: “Mais uma aventura de Clara, a Pegadora”, mas depois, conforme tentei dar às palavras o tamanho do sentimento e, depois, da frustração, sua expressão se transformou numa seriedade quase sofrida, solidária... talvez porque meus olhos estivessem cheios de lágrimas ao fim da confissão.
— Nossa, Clarinha! – conseguiu dizer após estender-me um lenço de papel e eu soar o nariz. — Por que não me contou antes? Por isso esse seu ar distante, uma preocupação constante que, de alguma forma, você transmite desde que voltou.
— Não sei bem por que não contei. Acho que queria me sentir minimamente recuperada para encarar o fato de que tenho que reencontrá-la para seguir adiante. E só eu posso fazer isso... e preciso estar bem para que isso aconteça.
— Foi sério mesmo, minha amiga. – Nana me analisava com a expressão séria, talvez houvesse também um pouco de pena naquele olhar. — Imaginar que a galinha da Clarice foi abatida...
— Abatida em todos os sentidos... quase virei canja. – aproveitei a deixa para brincar e quebrar aquele clima melancólico. Rimos, tomamos mais do café, rimos mais. Até que ela voltou ao assunto. Agora, se bem conheço Nana, ela não largaria o assunto.
— Mas, quais pistas você tem sobre ela?
— Nenhuma. – sorri desanimada. — Tudo foi tão rápido, intenso, que não conversamos sobre nada que me leve até ela.
— Não é possível. – Nana levantou-se e começou a andar de um lado para outro, matutando alguma ideia. — Deve haver um meio... e se houver nós vamos descobrir.
Quando Nana começou a me interrogar a fim de encontrar as tais pistas, o telefone tocou. Ela atendeu e retornou com o aparelho na mão... e um sorriso malicioso nos lábios.
— Laís para você.

continua...

CAPÍTULO 12 – QUASE O PRESENTE

Três anos se passaram desde que encontrei este bilhete no bolso do meu casaco a caminho de Ávila. E, se não fossem os indícios (meu nome na lista de passageiros daquele voo, os contratos que fechei nas reuniões que fiz, meus pais e o Pedro me esperando no aeroporto quando retornei com o coração em pedaços, com vontade de chorar) acharia que estava ficando louca... que tudo o que aconteceu foi coisa da minha cabeça.
No começo foi assim – pensei que tivesse tido alucinações –, mas eu tinha um número de telefone, e tentei ligar várias vezes durante semanas, mas ninguém atendeu depois daquele dia em que me senti deslocada do mundo, caída nua num lugar qualquer depois de viver dias de sonho.
Não tenho nenhum outro meio de contato, conversamos tanto e não tivemos tempo de dizer onde trabalhávamos, endereços, mais telefones... amigos que poderíamos ter em comum, os lugares de São Paulo que frequentávamos. Nossa conversa foi logo de cara tão além do convencional, tão maior que os assuntos que entretêm os desocupados, que esquecemos de falar o que, agora, seria fundamental para eu saber se tudo aquilo não foi uma farsa.
Vez ou outra sou tomada por uma revolta, vontade de contratar um detetive, de conseguir na justiça permissão para ver a lista de passageiros que viajaram naquele dia de Barcelona para Madri. Vontade de colocar o mundo de pernas para o ar... levantar todos os tapetes do universo para saber se há alguma pista, uma mísera pista de onde possa estar Clarice neste momento. Eu iria atrás dela. Se ela não me recebesse, invadiria seu lugar de trabalho, a esperaria na saída, seguiria seus passos até sua casa e gritaria, espernearia e vomitaria desaforos: “Como você foi capaz de fazer com que eu acreditasse numa vida realmente feliz e depois sumir como uma fugitiva, uma piranha covarde que foge!!!” Gritaria isso e mais, e depois sairia recolhendo meus cacos para me reconstruir em outro lugar.
Mas aí, vem quase que ao mesmo tempo a insegurança, o medo de saber a verdade, se essa verdade for apenas e simplesmente o fato de ela não ter querido mais que uma noite, uma aventura. Melhor viver sem essa verdade... assim minha vida não se torna vazia, preencho-a com a esperança. Ela deve ter tido algum motivo... não quero (quero) saber qual foi.
Tive que me reconstruir do mesmo jeito, com a dúvida: devo odiá-la ou não? Não consigo odiá-la porque ela não me explicou, não se defendeu.
Houve manhãs em que acordei desesperada, com a forte sensação de que ela estava morta naquele atentado terrorista (mesmo sabendo que, no momento em que aconteceu, ela estava em um avião), por isso não consegui falar com ela. Passava o dia angustiada, prestes a perguntar para cada pessoa que eu encontrasse se havia visto, em algum momento de 2004, uma mulher com aspecto de menina universitária, que sempre usa um rabo de cavalo mal feito e tem olhos negros enormes e brilhantes capazes de cativar rapidamente quando acompanhados do sorriso.
Chorei muitas vezes por conta dessa aflição, e tive noites de insônia em que recapitulava cada momento que tivemos juntas, chegando à conclusão de que tudo foi real e que eu não tinha explicação por tudo ter terminado.
Os afazeres e as pessoas do meu dia a dia foram suavizando a dor. Meu trabalho, meus amigos, meus pais... o Pedro.
Ele estranhou, óbvio, minha súbita mudança. Entramos em crise, pedi um tempo, terminamos, voltamos. Ele segurou minhas barras, tentou quebrar o muro que se formou entre nós, mas não conseguiu.
Mesmo assim, casamos.
Depois de quase dois anos tentando me reencontrar, achei que a resposta talvez estivesse em Pedro. Quando não conseguimos encontrar as respostas que procuramos, começamos a acreditar em sinais, nos tornamos místicas e espiritualizadas repentinamente, acreditando que tudo o que acontece é um complô dos deuses para nossa felicidade.
Quando já não tinha forças para acreditar num reencontro entre mim e Clarice, comecei a acreditar que nosso desencontro serviu de sinal: eu e ela não tínhamos de ficar juntas. Era um sinal de que tudo seria um desastre se insistíssemos. Minha felicidade estaria no casamento com Pedro. E resolvi seguir a vontade dos “deuses”... e dos outros.
Não sinto a felicidade que senti em meus dias plenos, mas acho que não sou infeliz.
Acho que estou na média das felicidades: nem muito, nem pouco... o suficiente para tocar a vida com uma certa acomodação sem culpa. Pedro é um bom marido, alguém com quem gosto de estar e que gosta de mim. Continuo trabalhando, indo à casa de meus pais, jantando com nossos amigos, viajando, indo ao cinema, teatro, museu... e vez ou outra – todos os dias – penso, nem que seja por segundos, nela. Ela, a lembrança de Clarice também faz parte do meu dia a dia, e acho que será assim para sempre.

continua...

CAPÍTULO 11 – A OUTRA VERSÃO

Quando entrei naquele avião o efeito dos tranquilizantes já havia passado. Sempre desligava para suportar o pavor de voar. Tinha me dopado no aeroporto, mas o voo demorou tanto que já estava boa.
Sabia que minha poltrona era a da janela, já tinha me preparado: cara de coitada e um discurso para solicitar a troca de lugar. Ouvir um “não” me forçaria a tomar outra dose cavalar de dopantes... um “sim” talvez fizesse com que eu dormisse após a angústia inicial.
Fui na direção do meu lugar e parei ao lado de minha companheira de poltrona, uma mulher elegante, que vestia roupas sóbrias. Parecia executiva e desenrolava o fio de seu ipod sem perceber minha presença. Só depois de alguns segundos ela ergueu os olhos e aí percebi que ela já tinha me visto sim, só não queria me olhar. Notei, pela sua cara de tédio, má vontade em olhar alguém que estacionou ao seu lado sem dizer nada.
— Você quer passar? – perguntou depois de me observar com olhos de sono.
Quase me sentei sem negociar, mas não custaria tentar... o máximo que poderia acontecer era ela dizer um “não” e eu achá-la uma chata pelas próximas 12 horas da viagem.
— Na verdade eu... eu... Bom, na verdade eu queria te pedir uma coisa. – ela me olhou como se quisesse me matar... mas eu já tinha começado... — Mas, claro que se você não quiser, não tem problema. – dei uma pausa porque senti meu sangue subir à face diante de um olhar que, aos poucos, se transformava do tédio para o paciente. — É que, me perdoa, mas morro de medo de altura e não consigo ficar perto da janela do avião... mas era o último lugar disponível...
— Você quer trocar de lugar comigo?! – interrompeu-me repentinamente em contraste com seu olhar quase meigo.
— É, eu pretendo pedir isso... se você não se importasse... se não fosse muita cara de pau de minha parte.
Ela pegou a bolsa, levantou-se, chutou delicadamente os sapatos para o lado e sentou-se na poltrona da janela sorrindo, provavelmente rindo do meu medo infantil. Imagina que uma executiva como ela, poderosa e linda teria medo de voar...
Eu poderia sentir vergonha, mas não me envergonho facilmente, então me sentei e agradeci. Meu rosto ainda ardia, mas pensei que fosse apenas o calor do momento.


Realmente bonita aquela mulher.
Nunca namorei executivas, pensei enquanto tirava meu livro da mochila e me ajeitava na poltrona. Já namorei patricinhas, bicho-grilos, punks e “normais”, mas não alguém tão... executiva. Parecia uma workaholic desde que nasceu, mas enxergava uma esperança para aquela moça de corpo bem torneado dentro daquele vestuário tão formal. Ela desenrolava o fio do ipod... ouvia música, não aproveitava a viagem para ler relatórios. Que bom! Talvez ela gostasse só de música clássica... Tudo bem, pelo menos ela se distraía.
Não me parecia arrogante. Parecia de saco cheio por estar naquela roupa desconfortável... estava sem os sapatos. Tinha os cabelos lisos e sedosos, tratados com cuidados de um bom xampu (senti o cheiro quando me sentei ao seu lado). Usava um perfume suave, que não fazia questão de se fazer notar, e isso também era bom. Tinha olhos verdes calmos, porém impostos, que me olhavam firmes. Acho que ali morava seu provável sucesso profissional (será que amoroso também?). Sempre tive mania de avaliar as pessoas partindo da primeira impressão. Mas, quem não faz isso? E depois se surpreende com a segunda, terceira impressões... ou se decepciona?
Tinha bom humor. Aliás, um humor inteligente, e adoro ser desafiada a respostas interessantes. Em poucos minutos travamos um papo-furado ótimo, que tratava de algo sem nexo, viagens de navio para a Espanha... viagem aos olhos dela... Acho que a viagem seria ótima. Nunca pensei numa viagem ótima de avião.
Só voltei ao chão (figurativamente falando) quando o piloto começou a dar as boas-vindas. Instantaneamente meus nervos se retraíram e outro tipo de calor me invadiu (existem vários tipos de calor). Odeio essa sensação! Prestes a pagar um mico ao lado de uma mulher que também me causava uns calores.
Ela percebeu minha fobia, óbvio, e tentou manter contato. Provavelmente precisava fazer a boa ação do dia e, como o dia já estava acabando, ela não perdeu a oportunidade. E como foi gentil me dizendo coisas do tipo: “Faz tempo que não acontecem acidentes aéreos no Brasil...”.
Me manteve com a mente ocupada, procurando respostas inteligentes para suas provocações. Só quando me disse que o avião já estava no ar há algum tempo fiquei imensamente grata e sinceramente comovida com a disposição de uma mulher em ser tão generosa com uma pobre moça fóbica como eu.
Finalmente nos apresentamos: Fernanda.
— Fer-nan-da... – eu disse pausadamente. — Gosto desse nome.
Segurei sua mão e senti sua pele fina. “Prazer, Fer-nan-da...”, pensei enquanto sentia seus dedos finos, com um anel de ouro branco no anular, envolvendo os meus. Olhei-a firme, queria que ela enxergasse em mim uma atração que se formava aos poucos, de uma maneira gradual e agradável. Queria saber se ela gostava de gostar de mulheres.
Talvez não.
Fernanda, delicadamente, retirou sua mão macia da minha... Recuei.
Falamos do livro que eu estava lendo, perguntei qual música ela gostava de ouvir e me surpreendi com seu gosto original, refinado. Comecei a perceber que Fernanda não era tão diferente de mim (segunda, terceira impressões...). Éramos diferentes na opção profissional e isso nos dava uma “carcaça” distinta: ela, uma publicitária de sucesso, que iria para uma reunião na Espanha e eu, uma acadêmica em ascensão, que palestraria sobre arte contemporânea na Universidade de Barcelona. Cada uma de nós, naquele momento, utilizava-se de estratégias para saber quais os pensamentos que iam pela mente escorregadia da outra, que tentava manter a razão no comando.
Inverti o “jogo” e perguntei sobre suas estratégias.
Será que estávamos jogando? Infelizmente eu ainda jogava: jogo de palavras, jogo de olhares e sensações... mas, inegavelmente, em questão de horas estava quase me apaixonando. Sou assim, que posso fazer?! Me apaixono, me encanto pelas pessoas que me surpreendem, e Fernanda fazia isso com uma facilidade que me assustava.
— Você utiliza estratégias de propaganda além do campo profissional? – perguntei séria.
— Como assim? – perguntou Fernanda com um olhar atento, como se observasse o que eu fosse dizer.
— Você acha que consegue coisas fora do contexto profissional por meio de estratégias.
— Acho que elas me ajudam a conseguir, mas não determinam nada.
— Para utilizar estratégias é preciso ser muito racional, não é?
— Sim.
— Sou péssima estrategista.
Isso mesmo. Meu jogo dura até o ponto em que me encontro fragilizada, e meu estado de fragilidade se manifesta quando o tesão surge. Sentia isso naquele momento: tesão em conversar com uma mulher tão interessante, tesão em ouvi-la, tesão em olhar para seus olhos que me analisavam, tesão naquele momento mágico, louco, fora dos acontecimentos da rotina.


Momentos assim não podemos deixar passar.
— Já esteve em Barcelona outras vezes então... – Fernanda mudou o rumo da prosa. Eu sorri como quem entendeu o desvio.
— Já... já dei outros vexames como este com outras pessoas...
— E elas foram tão legais como eu?
Opa! O que era isso? Acho que terei nova chance.
Não esperava a pergunta, mas gostei dela... fez com que o tesão aumentasse, vontade de perguntar se ela estava sentindo o mesmo calor estranho que eu.
— Não. Você é mesmo muito gentil... Você é uma pessoa legal de se conhecer.
— Tudo isso graças à minha técnica de entretenimento. – ela se desvencilhou meio sem graça. O que será que havia? Será que ela tinha medo? É comprometida? Persisti.
— É sério. Faz tempo que não conheço alguém tão interessante...
Acho que iniciamos um clima.
Mas também estávamos muito cansadas. O papo rolava há horas. Tínhamos momentos breves de silêncio sem o constrangimento inicial... voltávamos com outras perguntas, curiosidades, outros assuntos. Eu queria dizer tudo que conseguisse e bebia dela todas as palavras que me dava com atenção e prazer. Tínhamos pouco tempo e queríamos nos descobrir, mas o cansaço nos venceu e dormimos. Não queria dormir.
Não sei se sonhei, mas tive a sensação boa de estar dormindo num lugar confortável, envolta num corpo aconchegante, sensação de leveza e bem-estar... Acho que acordei sorrindo e me deparei com os olhos de Fernanda.
Meu sangue voltou a correr quente e apressado nas veias. Voltei a sentir o tal calor, o tesão veio mais forte, consequentemente a determinação também porque, depois de deixar um pouco daquelas 12 horas escaparem num sono, estava decidida a terminar (ou começar) com aquilo.
— Chegamos?
— Não. Pelos meus cálculos ainda temos algumas horas pela frente...
— Você está acordada há muito tempo me olhando?
Estava mesmo decidida a focar o rumo daquela conversa. Senti Fernanda reagir à minha pergunta tão direta.
— Desculpa.
— Por quê?
— Por lhe constranger.
— Não me constrange.
Minha vontade era pegar seu rosto em minhas mãos e beijar sua boca com delicadeza. Tentei manter a calma e usar um pouco a cabeça, respirei e permaneci serena observando aquela mulher linda.
— Você é muito bonita, Fernanda.
— Obrigada. Você também é muito bonita. – respondeu sem tirar os olhos de mim.
— Queria muito te dizer uma coisa, mas tenho medo de estragar o que estamos construindo... e estamos ainda no primeiro tijolinho... – meu coração começou a acelerar e meu ar faltar. Ela sorriu calmamente:
— É a segunda vez que você pede meu consentimento para alguma coisa.
— É... é preciso saber em que terreno estou pisando. Da primeira vez você foi muito gentil em trocar de lugar comigo... mas, agora... não sei se você vai escutar bem o que quero te dizer.
— Você arriscou levar um NÃO da primeira vez... Vai ter que arriscar de novo.
Deus... minhas mãos suavam e minha boca secava. Achei que fosse ter um troço antes de dizer o que estava decidida a dizer. Era questão de vida ou morte, era como lançar tudo o que eu tinha de melhor em mim naquele momento... o que estava em jogo era minha felicidade total ali, naquela poltrona de avião. Nada mais importava. Sou assim.
— Estou extremamente atraída por você. Talvez o fato de eu ser gay tenha facilitado minha conclusão, ainda bem porque temos só 12 horas de viagem e preciso ser rápida ou nunca mais te verei.
Disse. Eu disse, e ainda precisava aperfeiçoar o meu dito para que aquela declaração não se tornasse atrapalhadamente patética.
— Você pode se virar e fingir dormir e eu tentarei aceitar como um sinal de recusa. Pode me dizer um NÃO simplesmente e eu tentarei aceitar, mas não podia deixar de dizer o que estou sentindo.
Não conseguia mais dizer nada, estava exausta, apenas observava sua expressão, seus gestos nervosos, as linhas de seu rosto que se movimentavam, seu olhar aflito.
— Clarice, antes de mais nada preciso ser honesta com você... – baixei meus olhos e queria tampar os ouvidos para não ter que ouvir o NÃO. Minha vida estava naquela frase prestes a ser dita. — Estou prestes a me casar. Namoro há três anos um cara e... – olhei-a com um fio de esperança: — Não faça isso.
— Não farei nada que você não queira, Fê.
— Você também me atrai, mas...
Ajeitei-me na poltrona. Queria poder falar mais alto, queria poder estar mais próxima dela, pegar sua mão...
— Podíamos passar o dia juntas. Amanhã cada uma seguirá seu destino... Se quiser desapareço de sua vida amanhã, mas fique comigo hoje.
Minha felicidade era naquele momento, não me importava amanhã. Precisava ter uma coisa de cada vez.
— O que acha? Por favor, fala alguma coisa porque não aguento mais sem saber... – implorei porque a situação era urgente. Senti sua respiração ofegante, vi seus olhos brilharem. Havia ali, em Fernanda, a mesma angústia que a minha, o mesmo desejo... tinha certeza.
— Venha comigo. – ela me puxou com força pelo corredor do avião.
Fomos até o banheiro. Fernanda empurrou-me e fechou a porta. Nos olhamos com sofrimento até que senti suas mãos em volta do meu corpo. Passei meus braços pelos seus ombros e a puxei para o beijo tão desejado, tão necessário para que eu me mantivesse viva depois daquele turbilhão imenso que se deu dentro de mim. Estava exausta de tesão, de vontade daquela mulher que alucinou minha vida em menos de 12 horas, no lugar que mais me apavora. Seu beijo era urgente, o meu apressado a fim de tê-la o máximo que eu conseguisse, pois, naquele instante minha total felicidade estava ali.
— Temos que voltar. – ela disse sorrindo grudada em minha boca.
— Não quero sair daqui. Não quero nunca mais sair daqui.
— Ficaremos num lugar muito mais confortável. Hoje quero passar meu dia com você.
Voltamos para nossos lugares meio desarrumadas. Sentia-me sem equilíbrio, como se estivesse embriagada. E estava.
Sabe quando entramos numa expectativa medonha? Num estresse extremo, quase insuportável? Que nos trava, nos deixando sem saber o que fazer, o que dizer e pensar? Sufocadas diante de uma situação sem poder fazer nada porque há outras pessoas próximas e precisamos esperar o momento oportuno para explodir?
Estava assim. Era muita explosão para um corpo só!
Voltamos para nossas respectivas poltronas em silêncio, assimilando o que acabamos de fazer. Passamos pelo senhor que deve ter se dopado mais do que eu pretendia porque não acordou nem uma vez... e olha que fizemos bastante barulho.
Estava meio zonza, não sabia muito bem o que era tudo aquilo, parecia um sonho, um sonho louco. Estava ao lado de uma mulher fantástica, que eu tinha como inatingível, que parecia superior às minhas expectativas – e era –, mas era atingível. Via-me idealizando uma noite de amor com ela, mas seria apenas um amor romântico, impraticável, ideal. Eu passaria semanas e meses imaginando como seria. Mas eu a teria. Era fato, concreto. Ela estava sentada ao meu lado, estática como eu, e sei que tudo o que imaginei poderia concretizar há menos de uma hora.
Tinha que reconhecer que a excitação era maior que o receio.
Chances de me arrebentar no fim disso tudo? Quase todas.
Mas nunca fui mulher de pensar demasiadamente nas consequências de minhas loucuras.
Ela vai se casar. Ouvi isso e registrei. Isso podia significar várias coisas que não queria pensar naquele momento porque estava no primeiro estágio da imensa paixão: a atração. Se eu passasse para os demais estágios... estaria perdida.
Iríamos pousar.
Minha coluna quase quebrou tamanha a tensão que eu carregava sobre os ombros. Só então Fernanda saiu do seu torpor, pediu com carinho para segurar minha mão e começou a dizer coisas que me tiravam da tensão ruim e me levavam para uma tensão boa... Uma tensão tesão, que arrepiava, fazia com que meus seios ficassem duros e meu sexo molhado de desejo.
Chegamos ao aeroporto e comecei a pensar onde poderíamos ficar em Madri... Não tinha a mínima ideia porque sempre fiquei na casa de amigos. Mas Fernanda foi a trabalho e tinha hospedagem para aquele dia. Paramos na frente do hotel.
Fiquei boba com o lugar, lindo, enorme, além das minhas possibilidades de acadêmica.
— A minha sugestão possível era um albergue...
Deixei minha mochila e mala em qualquer lugar, pouco me importava se aquele lugar era legal ou não. Aproximei-me de Fernanda, afastei fios de cabelo do seu rosto enquanto dizia o quanto achava louco tudo aquilo.
Não ouvi o que ela dizia... na verdade nem a mim eu ouvia, só sei que disse algumas coisas irrelevantes e talvez engraçadas. Queria apenas ganhar tempo para observá-la antes de me aproximar e beijá-la com doçura, sem a pressa do desejo... naquele momento teríamos tempo, não o suficiente, mas o necessário para conhecê-la com cuidado e amor.
Ela foi me guiando até o banheiro enquanto nos beijávamos, suas mãos seguravam minha nuca e minha cintura e eu me sentia flutuar. Deixamos as roupas pelo meio do caminho e Fê abriu o chuveiro. A visão da água caindo sobre seu corpo nu foi demais, cena inesquecível. Fernanda era linda, uma paisagem... eu precisava tirar as gotas de água do meu rosto para vislumbrá-la e me entregar com intensidade a tudo aquilo. Abracei-a por trás e senti meu sexo roçar suas nádegas apetitosas, me esvaia em fluidos enquanto a ensaboava e conhecia, naquele momento sem as roupas, seus seios, seu quadril, suas coxas, suas costas... uma infinidade de beleza, me sentia anestesiada com o frio na barriga e as sensações que me percorriam como nunca antes. Fê virou-se para minha boca e a mordeu, e passou a me conhecer também e a me excitar ainda mais. Quando não aguentava mais pedi a ela que me levasse para a cama.
Parecia que Fernanda já me conhecia, parecia que ela sempre quis aquilo... quero dizer, sempre quis fazer amor com uma mulher. Mas... mas especificamente comigo porque parecia que sempre nos esperamos e nos queríamos. Impressionante como era meiga e como era claro que já havíamos feito tudo o que estávamos fazendo em pensamento. Já estava tudo ensaiado, já tínhamos feito amor diversas vezes em nossa fértil imaginação.
Segurei-a, pedi entre sussurros que me devorasse, mas antes queria mostrar a ela como tínhamos feito amor em pensamento, queria mostrá-la como é belo o amor entre duas mulheres... queria ser a primeira a dar o prazer extremo.
Fernanda gozou e relaxou em minha boca repleta dela. Um gosto bom, o gosto suave de tudo que vem dela... Ela gritou, olhou para mim e me lancei ao seu olhar de descanso após uma escalada desesperada ao perfeito: aquilo era a perfeição.
Abracei-a com cuidado e beijei seu rosto com o hálito dela. Virou-se, suspirou e me beijou com – não queria me arriscar em dizer, mas... – com amor.
Depois de um breve silêncio senti sua boca roçar meu pescoço e sua mão acariciar meu seio. Iríamos rumo ao perfeito novamente, não tínhamos tempo para longos descansos, era preciso urgência. Fê tateou meu corpo e pesquisou com habilidosa malícia meus pontos críticos, aqueles que antecipam o gozo. Virou-me de costas, beijou minha nuca, minhas costas e isso era uma covardia porque eu morria do tesão que me torturava... e eu gostava... adorava. Observou-me de cima, apertou minha bunda, foi até meu sexo por trás e começou a acariciá-lo até encontrar meu ponto máximo, o mais crítico dos críticos e comecei a gemer instantaneamente. Ela foi calma, metódica até perceber o momento da explosão. Antes disso, virou-me de frente para ela, olhou-me nos olhos, transbordando códigos que queria tanto entender, e mergulhou entre minhas pernas para terminar nossa busca. Fernanda me chupou maravilhosamente... quase chorei de emoção porque nunca ninguém havia me dado o que ela me deu.
Após o vislumbre do perfeito senti medo: medo de não ter aquilo novamente.

Dormimos. Não sei quanto tempo, mas acordei achando que tudo tivesse sido um sonho dopado. Que eu acordaria ainda dentro do avião prestes a pousar, e do meu lado haveria um bruta-monte roncando.
Não era sonho. Fernanda estava atada a mim como se sempre dormíssemos daquela maneira. Senti-me segura, protegida, extremamente feliz.
— Não acredito que dormi... – disse vendo-a velar meu sono outra vez.
— Você não queria dormir?
— Queria velar seu sono como você vela o meu...
Acariciei seu rosto e o beijei.
— Queria que todos os dias fossem assim.
Nossa! Essa frase me encheu de alegria porque não a esperava. O que aquelas palavras queriam dizer? Bom, exatamente o que disseram, sua tonta! Acordar todos os dias enroladas, juntas. Precisava confirmar a recíproca:
— Eu também.
Ela me perguntou se eu tinha namorado. Conversamos sobre o impulso que tivemos. Não me julgo, não a julgo. Se não fosse o que fizemos, continuaríamos nos procurando, levando uma vida sem grandes surpresas ou emoções, um dia após o outro. Não me perdoaria por não viver o que vivia ali, naquele momento, mesmo que o momento fosse breve. Fernanda mudou minha vida.
Não queria sofrer por antecipação, então, antes que assuntos inconvenientes me perturbassem puxei-a da cama a fim de levá-la para a noite em Madri.

Levei-a a um restaurante que eu já conhecia. Sempre que visitava alguns amigos em Madri parávamos ali para beber, conversar. Queria que Fernanda me conhecesse o máximo que eu pudesse mostrar no tempo que teríamos porque, talvez, ela se apaixonasse por mim como estou apaixonada por ela. Isso mesmo. Doente de paixão... já fui correndo para o segundo estágio: paixão após a atração. Sabia que isso aconteceria.
Perdida... isso sim.
Precisava mostrar a Fernanda que eu era simples, que gostava de um pouco de conforto, sem exageros, só para que me sentisse aconchegada, por isso a levei lá... era assim: bonito sem ser pretensioso. Acho que ela gostou. Olhou-me com a alegria e com a simplicidade que aquelas roupas executivas-formais-chiques ofuscavam. Agora eu a via melhor: uma linda mulher de baby look, blusa de lã com zíper e capuz, calça jeans justa ao seu corpo... e botas que a deixavam mais alta, a fim de mostrar uma mulher de trinta e poucos anos. Linda, uma beleza natural, lavada... queria poder admirar essa beleza para sempre.
Tinha começado a ficar preocupada, mas não queria que a preocupação se transformasse em angústia e antecipação pelo que poderia acontecer: o fim. Afinal ainda tínhamos algumas horas e não queria começar a sofrer antes da despedida. Mas..., ..., ... eu ficaria aos pedaços com certeza. Deixar a pessoa que eu mais queria no mundo partir sem mim seria uma dor nova. Já tinha terminado bons relacionamentos, já chorei a dor de cotovelo, mas nunca passei pelo sofrimento de deixar um amor ir embora no ápice da paixão. Do jeito que ficarei (eu sei que ficarei) escreveria um fado medonho, cheio de uma dor quase suicida.
Mas não poderia pensar assim. Não naquele momento em que Fernanda era pura luz e me enchia de felicidade em estar ali, com ela, que era olhada, admirada, cobiçada por outros olhos além dos meus. Mas ela era minha, pelo menos até o amanhecer.
Me dei conta de que estava há vários minutos pensativa. Os olhos dela me flagraram pensando tantas coisas... tantas...
Começamos a papear e nossos ouvidos foram levados para uma música. Sempre tive trilhas sonoras para acontecimentos importantes de minha vida, mas essa música não poderia ser... ou poderia... porque falava de separação, mas também falava em tentar de novo e esquecer o que passou. Desde sempre acreditei na força de um acaso que joga xadrez com nossas vidas, então acreditei que tudo daria certo quando Fernanda, olhando firme nos meus olhos explicou-me o que significava o título daquela canção.
— Sim. Questões da ciência não falam tão alto quanto meu coração. – traduzi a parte que entendi no meu péssimo inglês.
Comecei a desvendar Fernanda tomando goles de vinho. Comecei a me preparar para a luta. Eu a queria, tentaria buscá-la para ser só minha. Fizemos amor... não foi só a fome do sexo, foi a vontade da entrega total, até a essência. Eu sei e vi, e senti, e me dei... e queria tudo, tudo... explodiria novamente, derramaria meu amor e ele poderia ficar lá derramado sem correspondência, mas decidi lutar por ele até o fim.
— Fê... preciso de um mundo paralelo onde eu possa ver as pessoas e o mundo em que vivo o dia a dia de outra maneira. – precisava começar de algum ponto até chegar ao estou-apaixonada-por-você.
Um frio na barriga começou a me fazer flutuar quando percebi que Fernanda se aproveitava da minha fala para conduzir a conversa para o mesmo ponto que eu. Estava nervosa porque sentia o momento de uma conversa definitiva e acho que não estava preparada para uma resposta diferente da que eu esperava. Engoli seco, estirei meu braço e segurei sua mão, para que ela sentisse o meu calor e o meu nervosismo, eu precisava dizer que:
— Estou apaixonada por você.
Escapou.
Ela dizia algo, mas não conseguia ouvir mais nada. Eu precisava dizer assim, atropelando tudo. Fernanda sorriu enquanto eu me recompunha. Pigarreei, limpei minha garganta para voltar a falar sem nó, dialoguei rapidamente com meu coração solicitando batimentos menos rápidos e não tão barulhentos, pois não conseguia ouvir Fernanda falar.
Fui sincera e abri, escancarei que não estava preparada para me apaixonar por alguém quase casada, quando ela me disse com olhos cheios de lágrimas.
— Clara, não tem mais sentido levar a vida que eu levava depois de tudo que nos aconteceu. – olhei-a profundamente. — Volte comigo para o Brasil... Vou resolver minha situação e poderemos ficar juntas...
Foi o dia mais feliz da minha vida.

— Te encontro aqui depois de amanhã às oito.
— Estarei aqui esperando por você.
— Ávila é longe?
— Não. Alugarei um carro e vou dirigindo.
— Não acredito que terei de viajar de avião novamente.
Trocamos mais algumas palavras e nos despedimos num abraço forte. Coloquei no bolso de seu casaco um bilhete escrito no guardanapo do restaurante em que estivemos.
Fernanda foi um marco para mim também no que se refere aos assuntos da aviação. Antes os voos eram insuportáveis, agora eles eram insuportáveis ao quadrado sem ela ao meu lado para dizer coisas esdrúxulas a fim de me distrair. Estávamos novamente no aeroporto e eu não queria ir para Barcelona, queria ir para Ávila de carro com ela.
A vida não é só prazeres.
Um saco constatar isso quando estava apenas no meu primeiro dia de segundo estágio para um amor longínquo. O tempo pode ser mesmo muito cruel com mulheres como eu.
Trocamos telefones. Olhamo-nos mais uma vez nos olhos, senti vontade de beijá-la, mas não a beijei, apenas senti sua mão macia tocar meu rosto com carinho. Fechei meus olhos e viajei por segundos no futuro que teríamos. Nos abraçamos forte e nos separamos.
Sentei-me na poltrona do corredor. Fechei novamente os olhos e imaginei minha história com Fernanda daquele instante em diante. Esperava que ela tivesse coragem de resolver tudo e enfrentar as consequências de sua escolha. Afinal, não seria nada fácil, depois de 32 anos de vida “regrada” e aparentemente “normal” aos olhos dos outros, tomar a atitude de mudar radicalmente e viver da maneira que ela quiser.
Acho que Fernanda não era feliz. Não quero ser pretensiosa, mas acho que a ajudei de alguma forma a enxergar a vida que ela vivia, mas não protagonizava. Fernanda apenas assistia a alguns acontecimentos de determinados campos de sua vida... não interferia neles, não tomava rédea porque tomar conta da própria vida seria mostrar-se como ela é... e Fernanda É gay, e isso implicaria muita confusão num mundinho seu que parecia sempre ser conforme as “regras”.
Talvez eu a estivesse prejulgando, como fiz assim que bati os olhos nela, mas eram pensamentos meus... meu jeito de tentar organizar as coisas dentro de mim. O mais importante foi que foi ela quem tomou a iniciativa de “resolver” tudo para ficarmos juntas, ela quem estava se desmontando para se reconstruir forte e fiquei feliz por fazer parte disso. Estava me fortalecendo para recebê-la e, juntas, faríamos tudo dar certo.

Minha apresentação foi fantástica, modéstia a parte. Consegui me expressar de maneira que todos me entendessem e me olhassem como uma futura mestra e doutora em arte contemporânea. Meu orientador disse que havia mais alguns projetos que eu poderia integrar para ajudar a desenvolver e, provavelmente, emendaria meu trabalho de mestrado num doutorado. Um professor de uma universidade brasileira até me ofereceu trabalho, mas pedi um tempo para pensar: “Calma! Uma coisa de cada vez!”
Contei tudo para Fê, que também fez ótimos negócios em Ávila. Mas, na verdade, não estávamos muito a fim de falar de trabalho... estávamos querendo falar de amor!
Assim que desliguei o telefone, Tatiana surgiu radiante da multidão de “intelectuais”.
— Vamos comemorar antes de partir?
Fomos para um bar. Tati era uma amiga portuguesa da faculdade que se mudou para Madri e fazia mestrado em Barcelona. Era especialista em literatura espanhola contemporânea.
Bebemos, comemos e conversamos muito até surgir a proposta que mudou, outra vez, minha vida:
— Topas voltar hoje comigo para Madri?
Eram seis horas da tarde em Barcelona. Estaria em Madri antes das nove, dormiria tranquilamente na casa de Tati e logo cedo pegaria um metrô até o aeroporto. Achei que seria uma ótima ideia.
Acordei atrasada no dia 11 de março de 2004. Despedi-me de Tatiana e corri para a estação.
Entrei no metrô às sete horas da manhã. Estaria no aeroporto antes das oito.
Depois disso tudo se apagou.

continua...

sábado, 3 de julho de 2010

CAPÍTULO 10 – QUANDO É MELHOR NÃO ACORDAR

Meu estado foi grave até o momento em que abri os olhos. Os médicos disseram aos meus pais que o estado crítico havia se alterado: ainda era delicado, mas eu não morreria. Talvez ficasse tetraplégica, mas ainda não era um diagnóstico definitivo. Quando o ortopedista veio até mim – ergueu minha pálpebra para enfiar aquela luzinha e pediu que eu seguisse seu dedo indicador com os olhos – me disse num rápido espanhol: “Você tem condições de ter de volta seus movimentos...”.
Meus olhos não se encheram de lágrimas.
Não tinha em mim o sentimento adequado para aquela ocasião. Sentia um misto de raiva do destino, da vida, uma pena da minha puta sorte besta e uma vontade de mandar todos à merda. Se fosse para eu voltar daquele jeito depois dos dias inacreditáveis que tive era melhor não voltar... poderia ter sido uma mulher bomba naquela linha do metrô.

Era como viver um pesadelo.
Quando tive a exata noção do trabalho que teria para voltar a ser eu mesma, pensei em desistir. Sentia-me cansada, achava-me um “joguete” nas mãos do destino que, nos momentos antes do atentado, deu-me tanto e, no segundo seguinte, arrancou-me até o que eu já tinha por direito adquirido, como andar, correr, gesticular... Que sacanagem!
Quando meu corpo começava a doer ou formigar, desejava morrer, jogar-me da cama ao chão e ficar lá, só para não ter de sentir mais nada. Tinha ataques de nervos por não conseguir expressar nada, nem um pouco da angústia que me dominava por não me mexer. Logo eu que sempre achei que dormir era perda de tempo... que adorava caminhar, conversar, trabalhar... agora ali presa naquela cama sem saber se um dia teria meus movimentos de volta. Dormir era a única maneira de fugir daquele sonho ruim.
Mas aí pensava em Fernanda. Tudo tinha ficado mal resolvido. O que ela pensou a meu respeito quando não cheguei no horário marcado? Como ela se sentiu embarcando sozinha depois de tudo o que passamos e combinamos? O que ela pensou duas semanas após nosso encontro frustrado? Eu nem ao menos liguei...
Quando me fazia essas perguntas, voltava atrás na ideia de desistir. Não poderia deixar de procurá-la para explicar o que aconteceu. Nem que fosse a última coisa que eu fizesse (dramática assim mesmo porque minha situação era essa), o que não poderia era deixar que ela pensasse que sou uma vaca.

Os médicos me disseram que, se eu sentia dor tinha chances de me recuperar. Perdida estaria se não sentisse nem isso... Certamente seria um repolho dali para frente. Avisaram-me que logo seria iniciada uma etapa completamente nova e importante em minha vida: a da fisioterapia.
Meu pai já estava providenciando seções diárias para quando eu voltasse ao Brasil.
Enquanto isso passava meus dias em observação na UTI. Minha mãe ficava comigo a maior parte do tempo. Como todas as mães amorosas, ela largou tudo para estar ao meu lado. Lia para mim os jornais da Espanha e do Brasil, falávamos sobre banalidades, fazíamos planos para quando eu estivesse melhor. Mesmo quando eu comentava que ela estava muito cansada e abatida, sorria e dizia para não me preocupar, que estava imensamente feliz por eu estar ali conversando com ela... Mamãe sempre me lembrava das coisas que ainda tinha que fazer, então me lembrava que teria que encontrar Fernanda.

continua...