sábado, 26 de junho de 2010

CAPÍTULO 8 – DE VOLTA A MADRI

Acordei às seis da manhã. Na verdade, não dormi. Meus hormônios estavam em reboliço, não conseguia relaxar, fechar os olhos e dormir simplesmente, minha cabeça não parava de pensar vários pensamentos simultaneamente. Desde que cheguei à Ávila falei com Clarice poucas vezes, estivemos atarefadas e os horários de nossos compromissos eram incompatíveis.
Consegui uma sociedade para a agência e boas contas para os próximos dois anos. Clara disse que sua apresentação foi elogiadíssima e estava sendo rondada para novas pesquisas. Estava radiante minha menina, dizia coisas que eu não entendia, mas nem precisava entender, só de ouvi-la tão feliz... Por fim me disse que talvez encontrasse uma amiga de turma naquela noite, beberiam e, no dia seguinte, estaria de volta a Madri para retornarmos juntas ao Brasil.
Entreguei o carro no aeroporto às sete.
Combinamos de nos encontrar no embarque. Já tínhamos a passagem, estava tudo certo. Despachei a bagagem e sentei-me de frente a porta da sala de embarque. Tentava não estar tão ansiosa, mas era inevitável. Não tirava os olhos daquela porta a fim de ver uma mulher linda, baixinha, de cabelos lisos sobre os ombros atravessá-la.
Abri um livro, li duas linhas. Tirei o casaco, olhei ao redor. Fui até o café: sete e quarenta e cinco. “Ela teria que estar aqui já...” andei pelo saguão, perdi meu lugar, voltei ao café, guardei o livro.
De repente notei uma confusão, pessoas com expressão aflita. Ouvi muitas sirenes ao longe, tentei entender o que estava acontecendo. Já passava das oito e nada de Clarice... Nada do voo também. Algumas pessoas corriam, policiais. Mais sirenes. Perguntei para uma funcionária o que estava acontecendo e ela me respondeu que houve um acidente no metrô, mas que não sabia exatamente o que era. Já estávamos na sala de embarque e não nos deixavam sair.
Liguei para o celular de Clara. Nada. Tocava até cair na caixa postal.
Liguei mais uma vez, duas, três. “Não é possível!”
Ouvi a chamada para o voo.
Fiquei aflita. “Pelo amor de Deus, Clara, atende!”. Nada.
Fui até a funcionária e perguntei se poderia trocar a passagem para mais tarde e ela disse que este seria o último voo, pois havia acontecido um atentado terrorista no metrô de Madri. Ainda me apressou dizendo que já tinham chamado para o embarque pela última vez.
Liguei mais uma vez.
“Será que aconteceu alguma coisa??? Mas... ela viria direto de Barcelona para cá!!! Ela não estava no metrô!!!” Voltei para a funcionária e expliquei a situação. Disse que uma amiga que viria no voo de Barcelona, às sete da manhã, me encontraria ali para voltarmos ao Brasil. A funcionária checou os voos e me disse que o avião que veio de Barcelona havia chegado no horário.
Não entendia. Como podia ser aquilo? Se o avião chegou às sete, porque ela não estava ali comigo?
Liguei.
Nada.
Estava ficando desesperada.
— Por favor, señora!
Fui em direção à rampa desnorteada. Tentei me acalmar “calma, Fernanda, se ela teve algum contratempo, pegará outro voo, vai entrar em contato...”
Entrei no avião com a esperança de vê-la na poltrona ao lado da minha “uma surpresa talvez...”. Mas não havia ninguém. “Ela desistiu.”

continua...

CAPÍTULO 7 – RUMO A BARCELONA, RUMO A ÁVILA

— Te encontro aqui depois de amanhã às oito.
— Estarei aqui esperando por você.
— Ávila é longe daqui?
— Não. Alugarei um carro e vou dirigindo.
— Não acredito que terei que viajar de avião novamente.
Sorri. Estávamos no aeroporto. Ela voaria até Barcelona e eu teria que estar em Ávila às dez da manhã. Estávamos exaustas e doloridas, mas muito felizes.
— Não quero nenhum pedido de sua parte para troca de lugares no avião, ok?
Ela riu divertida e me beijou.
— Acredita que não trocamos telefones?
— Nossa! Que distraída. – revirei minha bolsa e encontrei um cartão. — Meu celular e meus telefones de casa e do escritório.
— Ótimo. Coloque o meu na sua agenda.
Peguei meu celular e anotei.
— Só tenho o número do celular. Não vou te passar o da casa dos meus pais porque eles nunca sabem onde estou. – sorriu. — Bom, me espere. Depois de amanhã estaremos a caminho do Brasil.
— Com toda certeza do mudo. Boa sorte em sua apresentação.
— Boa sorte em sua palestra, espero que agora esteja preparada.
Senti seu abraço forte e sua mão colocando algo no bolso do meu casaco. Acho que eu estava fazendo a coisa certa: investindo tudo naquela paixão repentina.

Deixei-a no embarque e fui em busca de um carro que me levasse a Ávila.
No caminho pensei em tudo. Em como desmancharia meu namoro de três anos com Pedro, em como me explicaria com meus pais que o amam mais do que eu. Tentaria não dizer o motivo real do rompimento por enquanto, omitiria parte da verdade, colocaria panos quentes antes de revelar a causa da minha súbita mudança. Mudança para melhor. Clarice me fez viva, uma mulher de verdade, que sentia a paixão arder, o prazer intenso... Nunca havia sentido antes o que senti ontem. Faltava Clara.
Estava com cara de boba, que sustentava um sorriso permanente. Sentia-me leve, disposta a tudo... aquela força que surge e que nos envaidece. Eu me sentia tão forte que seria capaz de enfrentar qualquer dificuldade com alegria. Não conseguia parar de pensar em Clara nem um minuto. Seu jeito, seu sorriso, sua voz, seus olhos, seu corpo, sua personalidade... eu respirava Clara e rememorava tudo o que havia acontecido até ali, desde o momento em que ela entrou no avião.

continua...

quinta-feira, 24 de junho de 2010

CAPÍTULO 6 – A NOITE EM MADRI

Ela me levou a um restaurante no centro de Madri. Muito charmosinho, aconchegante. Tinha a cara dela, um lugar bonito, mas não simplesmente bonito, tinha estilo. Clarice tinha muito estilo, personalidade, e foram essas características que me chamaram a atenção antes que eu ficasse assim.
Assim como?
Não me lembro do nome do restaurante agora, mas acho que nem observei... Talvez ela tivesse me dito, mas algumas coisas que ela dizia eu não ouvia. Minha cabeça estava a mil, tinha coisas decisivas na minha vida a resolver, decisões sérias a tomar, sentimentos a sentir, emoções a arrebatar, sensações a me entregar. Tudo acontecia tão rápido, rápido como num curta-metragem, num capítulo-piloto. Não tínhamos tempo e o que precisava ser conversado era muito sério.
Sério?
É, sério.
Tudo aquilo que eu estava sentindo tinha um nome e, naquele momento, além da emoção da loucura realizada, estava apavorada.
Sabe por quê?
Porque eu estava apaixonada por Clarice!
M-E-R-D-A!!!
Não nasci para o sexo casual. Estava feliz, mas também preocupada. Uma pessoa calculista sempre calcula os riscos, os medos, mesmo que a emoção prevaleça, a razão está sempre à espreita. Por outro lado, não queria fazer ou dizer nada que a afastasse de mim, acho que meu maior medo era perdê-la. Mas, eu estava apaixonada... e precisava dizer antes que fosse tarde.
Tomávamos coquetel numa mesa do segundo piso diante de uma vista linda. Madri era uma bela cidade, mas só conseguia enxergar a beleza de Clara, num vestido azul de gola oriental e sapatos de boneca. Chamava a atenção por onde passava. Alguns rapazes, e algumas mulheres, vez ou outra, a observavam... mas acho que ela não os notava.
— Preparada para sua palestra? – perguntou para quebrar meu silêncio, interromper meu amontoado de pensamentos.
— Não. – rimos. — Mas não estou preocupada com isso. – tomei um gole da bebida, bati com a ponta dos dedos na mesa impaciente. Não queria que a angústia e a precipitação me dominassem. Por segundos ouvi a música que estava tocando... linda. Tentei disfarçar meu nervosismo e conversar sobre coisas leves para conhecer um pouco mais a pessoa que me dava a impressão de já ter me mostrado tudo o que eu precisava saber para amá-la.
— Essa música é linda, não acha?
— Sim, é do Coldplay, mas não entendo quase nada do que eles cantam. Sou melhor em espanhol... – respondeu rindo e acenando para o garçom. Assim que ele se aproximou pedimos os pratos e um vinho.
— A música fala de um amor prestes a acabar, mas ele quer tentar novamente, não se conforma com a separação... “...tenho que lhe achar, dizer que preciso de você, dizer que a abandonei...”... é melancólica...
— E o que o “the scientist” do título tem a ver com isso?
— Ele diz que questões ou soluções da ciência não traduzem seu sentimento. Acho que ele quer dizer que a racionalidade jamais ofuscará seu amor e não resolverá o que vai em seu coração.
Após minha tradução simultânea com direito a interpretação do texto, Clarice me olhava com ternura e isso me embaraçou, fiquei vermelha, senti calor e acho que ela percebeu.
— Você é muito sensível, Fernanda. Você é uma mulher forte, séria, mas consigo ver através da sua aparência uma mulher doce, cheia de amor... e sensibilidade. – ela dizia sustentando o queixo com uma das mãos, sorrindo com seus olhos negros.
— Então você já consegue enxergar o que vai dentro de mim... – provoquei-a me libertando do embaraço.
— Sim. Porque também sou sensível... Acho que nessa vida, para se dar bem, é preciso enxergar além das aparências, conhecer o essencial. Esse mundo é muito superficial, Fê... preciso de um mundo paralelo onde eu possa ver as pessoas e o mundo em que vivo o dia a dia de outra maneira. Por isso estudo arte, é uma outra visão de mundo...
Seus olhos brilhavam. A garota me fascinava cada vez mais. Parecia que nos conhecíamos há anos.
De verdade eu estava apaixonada e precisava dizer. Dane-se.
— Eu queria muito fazer parte de seu mundo paralelo. – comecei por meio de metáforas idiotas. Ela sorriu, esticou o braço para tocar minha mão. Arrepiei. Mas logo o garçom se aproximou com os pratos e o vinho. Ficamos em silêncio nos olhando enquanto ele nos servia. Meu sangue fervia, perdia todo o controle de mim.
Quando ele se foi eu não sabia mais como retomar a conversa, mas ela soube:

— Depois do que aconteceu nessas últimas horas posso dizer que você é, no momento, meu mundo paralelo... – repentinamente Clara ficou séria e, outra vez, esticou sua mão para tocar a minha.
Dane-se.
— Não sei se você vai se assustar com o que vou dizer, mas, já que tudo está acontecendo tão absurdamente rápido, inusitado, louco, não posso perder tempo medindo palavras ou tentando observar por meio dos seus gestos se você sente a mesma coisa... – agora era a hora... Mas ela me interrompeu:
— Estou apaixonada por você.
Era exatamente o que eu iria dizer!
Sorri um tanto aliviada. Baixei os olhos e me senti tremer. Sua mão ainda segurava a minha e acho que ela percebeu quando comecei a suar.
— Não sei o que fazer, Fernanda, não estava nos meus planos me apaixonar por uma mulher quase casada.
Quando voltei a olhá-la, meus olhos estavam cheios de lágrimas. Ela me passou o guardanapo de pano. Fiquei em silêncio por algum tempo até que anunciei minha decisão:
— Clara, não tem mais sentido levar a vida que eu levava depois de tudo que nos aconteceu. – olhei-a profundamente. — Volte comigo para o Brasil... Vou resolver minha situação e poderemos..., ... não sei, nos conhecer melhor, sem nos preocupar em magoar ninguém.
— Vai ser mais uma loucura, você sabe... – ela concluiu sorrindo serenamente. — Mas eu topo.
Tive vontade de beijá-la arrebatadoramente ali mesmo, mas apenas brindamos com o vinho, nos aproximamos e trocamos um breve selinho diante da plateia do restaurante. Estava pouco me importando. Foi o melhor jantar da minha vida.

Voltamos correndo para o hotel. Estávamos meio altas por conta de uma garrafa e meia de vinho e, consequentemente, a libido saía pelos poros. Assim que entramos no elevador, Clara me empurrou contra a parede e me beijou, colocou sua perna entre as minhas e minhas mãos passearam por aquela coxa firme, subi até seu sexo pulsando... sugava seu pescoço com tanto tesão. Ela abriu minha calça, mordeu meu lábio: “Quero você...” Ela me teve, eu a tive. Fizemos amor a noite inteira. Olhei no relógio quando estávamos exaustas: eram cinco horas da manhã.

continua...

sexta-feira, 18 de junho de 2010

CAPÍTULO 5 – EM MADRI

Estávamos extasiadas. Bom, pelo menos eu estava. Não conseguia concluir um pensamento sequer.
Pela primeira vez na minha vida certinha e mascaradinha não senti culpa. Poderia sentir culpa por não sentir culpa, mas não sentia... o que posso fazer? Aquela mulher estava ali ao meu lado com seus pensamentos me olhando de canto de olho, provavelmente imaginando o que faremos logo mais num quarto de hotel em Madri. É claro que não poderia deixá-la escapar. Não poderia, não queria.
Mas tinha medo de uma coisa. Não era medo de o Pedro saber que o traí, nem medo que ele cancelasse o casamento, nem que minha família inteira ficasse sabendo. Tinha medo de realmente estar apaixonada por Clarice e sofrer como nunca sofri quando ela se for.
Torcia para que quando terminássemos o sexo, ela virasse para um lado, eu virasse para o outro e pensássemos: “Foi ótimo, mas foi só isso!”.
Morria de medo de estar apaixonada por ela.
Iríamos pousar.
— Pronta para sair da biblioteca? – perguntei observando seu perfil sério, olhando tensa para frente.
— Claro que não. Agora que estava no ar, queria ficar lá para não ter que descer.
— Posso segurar sua mão se quiser.
— Por favor, faça isso... se conseguir tirar uma de minhas mãos do apoio.
Peguei sua mão direita com carinho e comecei a cochichar em seu ouvido.
— Iniciando o método de entretenimento para aterrissagem... – ela sorriu um pouco nervosa. Continuei: — Se pudéssemos ficar no banheiro, no momento do pouso, você nem perceberia que estava saindo da “biblioteca”.
— Por quê? – perguntou com um meio-sorriso malicioso.
— Porque estaria te beijando e fazendo tudo o que estou imaginando fazer com você logo mais... – eu sussurrava em seu ouvido e a sentia arrepiar. Vi, através de sua blusinha, o bico dos seus seios intumescerem. Eu, por minha vez, estava com a calcinha encharcada por baixo daquela saia de executiva frígida. Tudo aquilo era pura loucura.
No saguão do aeroporto, depois de pegarmos as malas, ela me olhou sorrindo:
— Podíamos ir para...
— Deixa comigo, Clara. Ficaremos no hotel onde tenho reserva.
Chamei um táxi e fomos em direção ao hotel. Ainda bem que todo aquele quarto não seria só meu. Seria nosso lugar por um dia e queria muito que ela se sentisse especial, queria marcar Clarice, fazer com que aquelas poucas horas que teríamos juntas fosse inesquecível.
De mulher centrada, racional e estrategista, tornei-me uma boba sedenta por aquela mulher de boca macia e sensual que me dizia coisas que, naquele momento, eu não escutava. Naquele momento estava nervosa tentando ter o mínimo de controle para organizar com antecedência o que faria quando estivesse diante dela no quarto.
Precisava de um banho. Sentia-me incomodada após suores e fluidos que brotavam do meu desejo. Eu naquela camisa, naquela saia e naquele blazer que combinavam, que me davam ar de mulher-intocável já tinha sido literalmente amassada por uma pirralha que estava exercendo em mim o poder que só minhas falidas tradições familiares exerciam. No momento Clarice estava ganhando...
Aquele ar de mulher fria e segura ia por água abaixo quando ela olhava para mim.
— Chegamos.

Clara estava boquiaberta no meio do quarto.
— Nossa! Esse lugar é lindo!
— Que bom que gostou...
— A minha sugestão possível era um albergue...
Rimos enquanto ela deixava a mochila cair e eu colocava minha mala no closed. Clara se aproximou de mim e afastou fios de cabelo que caíam sobre meu rosto.
— É uma puta loucura tudo isso, não é?
— É. – não sabia o que dizer diante de seus olhos.
— Mas não é tudo na vida que temos que explicar... Não tenho o costume de reprimir meus desejos. Algo explode dentro de mim.
— O desejo explode em você?
— É. Não sei aonde isso vai me levar... já fiz algumas loucuras na vida. Só sei que sinto uma vontade enorme de te beijar, te tocar, desde o momento em que te vi sentada no lugar que eu queria que fosse meu.
— Pensei que aquele olhar era um plano para me conquistar e me tirar daquele lugar que você queria que fosse seu.
Ela se aproximou e me beijou com doçura. Havia tanta coisa que não conhecia dela... Não conhecia esse beijo, por exemplo, só o apressado no banheiro do avião. Aquele me dava a impressão do sexo casual, este me remetia à paixão. Seus lábios deslizavam devagar sobre os meus e os sugavam com calma, de olhos fechados com os pés um pouco levantados. Tirei meus saltos e ainda com as bocas coladas puxei-a em direção ao banheiro para o banho necessário.
Havia uma jacuzzi no meio do imenso banheiro que parecia uma sala de estar. Queria muito ficar horas com ela naquela banheira, deslizando minhas mãos pelo seu corpo embaixo da água, mas a urgência me impedia de pensar em preparar os sais para um banho demorado. Queria simplesmente sentir-me limpar para tê-la para mim.
Abri o chuveiro e mergulhamos na correnteza da água quente. Ela sorriu, passou as mãos pelo cabelo molhado. Linda, linda... Seu cabelo escorrido pelos ombros, as gotas d’água no seu rosto risonho de olhos negros brilhantes, espertos. Sentia-me cada vez mais íntima dela, como se já tivéssemos tomado banho juntas diversas vezes.
Ela me abraçou por trás e começou a passar o sabonete em minhas costas, fez massagem nos meus ombros, fez carinho na minha nuca, desceu até meus quadris, puxando-me com força contra seu ventre... foi até minhas coxas. Abraçou-me com as mãos ensaboadas e massageou minha barriga, meus seios, meu pescoço... desceu novamente até minha virilha... não aguentava mais. Virei-me e a beijei com tesão, envolvi-a nos meus braços, passeei minhas mãos pelo seu corpo moreno, de quadril largo e seios pequenos... tudo proporcional a ela. Toquei seu sexo com delicadeza, ela gemeu mordendo meu ombro. Continuei a massageá-lo e, aos poucos, fui entrando devagar, com cuidado para não quebrar aquele clima sensual e delicado. Ela sussurrou em meu ouvido: “Me leva para cama” e foi o que fiz, levei-a e a deitei, e deitei por cima, e continuei a sentir aquele gosto de sua boca, um gosto bom, um gosto que eu só poderia sentir da boca dela.
Clara me segurava com tanta força que senti suas unhas entrando na pele de minhas costas, e ela dizia: “Me pega pra você...” E quando me preparava para devorá-la ela se virou de repente sobre mim e sentou-se sobre minhas pernas.
Observava meu corpo abaixo do dela, acariciava meus seios com as duas mãos, massageava-os, beijava-os. Seu cabelo escorrido estava diante de seu rosto, por isso não o via, não podia decifrar o que ia em seus pensamentos enquanto decorava meu corpo com as mãos pequenas de unhas bem feitas. Beijou-me mais uma vez a boca... morou nela até que encontrou meu ponto mais íntimo e fez carinho, me perdi de mim, minhas sensações naquele momento eram novas, fortes demais, inexplicáveis, não sabia mais o limite do prazer e do algo além do prazer... do algo indizível porque não há palavras para dizê-lo.
O que Clarice fez por mim naquele quarto, naquela cama, naquele dia, jamais vou esquecer... e as sensações ainda passam como vulto por mim. Eu me arrepio, e me arrepia o medo de nunca mais sentir isso novamente.
O orgasmo veio com uma força que eu não esperava. Gritei, pedi que parasse e, na verdade, não queria que parasse, mas não aguentava mais a força do gozo.
Dormimos por muito tempo, mas não sei dizer quanto porque perdemos a noção das horas, só sei que o sol começava a se pôr. Estávamos abraçadas. Abri os olhos com Clarice presa em meus braços, meus seios grudados em suas costas, meu ventre encaixado em seu quadril... um braço por baixo de seu pescoço e o outro envolta de sua cintura. Bom, acho que ela não teria como fugir sem que eu acordasse.
Beijei seu ombro com cuidado para não acordá-la, mas ela se espreguiçou como uma gata manhosa e encolheu-se quando cheirei sua nuca.
— Não acredito que dormi... – ela se lamentou virando-se para mim.
— Você não queria dormir?
— Queria velar seu sono como você vela o meu...
Acariciou meu rosto e o beijou.
— Queria que todos os dias fossem assim. – deixei escapar sem querer, foi mais forte que eu. Sei o quanto uma declaração dessa pode ser polêmica na primeira vez...
— Eu também.
Essa declaração foi mais polêmica ainda.
— Não quero ser indiscreta, mas como já nos vimos sem roupa, acho que posso perguntar uma coisa: você namora? – perguntei abraçada a ela, muito próxima, em condições perfeitas de ser um detector de mentiras.
— Não. – disse sustentando com firmeza seu olhar com toda a malícia do mundo. Meu “detector” não rastreava mentira alguma vindo dela, apesar do olhar malicioso. — Estou disponível, ofereço serviço pós-voo, delivery e afins... – ela sorriu encaixando-se mais em mim.
— Queria que você soubesse que esse tipo de situação não é comum em minha vida.
— Não precisa me dar explicações.
— Você pode estar pensando um monte de coisas... Uma mulher tão metida à séria e com namorado... Tudo isso não é um fetiche.
— Não estou pensando nada, Fê! Relaxa. Você pensa que faço o que fizemos toda vez que venho a Madri? – provocou sorrindo e me beijou em seguida. — Vamos aproveitar a noite! Você me trouxe para esse hotel, tivemos momentos maravilhosos. Agora vou te levar para passear em Madri. Quero que tudo seja perfeito.
Saltou da cama sorrindo me puxando pela mão.
Ainda teríamos muito pela frente. Era o que eu sentia.

continua...

terça-feira, 15 de junho de 2010

CAPÍTULO 4 – NA “BIBLIOTECA”

Acho que dormimos umas duas horas mais ou menos. Acordei com o barulho das comissárias distribuindo a refeição. Levantei os olhos e olhei para meu lado esquerdo, onde Clarice dormia serenamente. Seu pescoço pendia para seu lado direito, ou seja, quase encostava a cabeça em meu ombro. Não me incomodaria se ela fizesse isso... não me incomodaria de velar aquele sono profundo e risonho, colado numa fisionomia de expressão leve... parecia que estava mesmo numa “biblioteca”. Clarice era muito bonita. Acho que me questionei, mais uma vez, por alguns minutos, o motivo de todo aquele encanto. Eu não sabia. Já havia me encantado por outras mulheres, mas não achei que tivesse sido o suficiente para arriscar queimar minhas tantas e rígidas tradições familiares; sempre pensei na paixão homossexual como uma doença: repouso longe da pessoa enamorada e logo passa, logo cura.
Mas... só podia ser uma paixonite louca o que sentia naquele momento por Clara, aquela mulher tão diferente que me fazia rir, sentir carinho e vontade de tocar. Só podia ser isso. E, de certa forma, isso me assustava porque...
— Chegamos?
— Não. Pelos meus cálculos ainda temos algumas horas pela frente...
— Você está acordada há muito tempo me olhando?
A pergunta veio como uma flecha e eu desmontei. Guarda zero... nenhuma barreira, nenhuma defesa, sem tempo para estratégias, ela poderia fazer comigo o que quisesse. Mas não fazia!
— Desculpa.
— Por quê?
— Por lhe constranger.
— Não me constrange.
Aquela conversa estava ficando estranha e eu não estava mais conseguindo relaxar, nem ser criativa nas minhas respostas, nem brincar com as palavras. Clarice estava encolhida na poltrona, suas mãos se juntavam em forma de apoio para seu rosto... e me observava com “olhos de ressaca”. Isso me deixava mais inquieta, a calma dela diante de mim. Da mesma maneira que eu queria que todo aquele jogo de sedução (só podia ser sedução tudo aquilo) terminasse, sentia-me completamente seduzida a continuar olhando para os olhos negros e grandes e, agora, sonolentos que me olhavam sem um pingo de incômodo.
Não me desviei deles, mas, aos poucos, ia perdendo o fôlego.
— Você é muito bonita, Fernanda. – disse com a voz baixa e um pouco rouca, calma como se tivesse me dito aquilo um milhão de vezes depois de acordar. Poucas vezes me senti num momento tão íntimo. Senti a adrenalina percorrer minhas veias... estava num estágio de imensa excitação.
— Obrigada. Você também é muito bonita. – ela sorriu.
— Queria muito te dizer uma coisa, mas tenho medo de estragar o que estamos construindo... e estamos ainda no primeiro tijolinho... – agora eu sorri.
— É a segunda vez que você pede meu consentimento para alguma coisa.
— É... é preciso saber em que terreno estou pisando. Da primeira vez você foi muito gentil em trocar de lugar comigo... mas, agora... não sei se você vai escutar bem o que quero te dizer.
— Você arriscou levar um NÃO da primeira vez... Vai ter que arriscar de novo.
Clarice ficou séria e seus olhos perderam o aspecto de calma. Eles brilharam, estavam vivos novamente e maiores que o normal. Sua seriedade me transmitiu tensão.
— Então lá vai.
Gelei.
— Estou extremamente atraída por você. Talvez o fato de eu ser gay tenha facilitado minha conclusão, ainda bem porque temos só 12 horas de viagem e preciso ser rápida ou nunca mais te verei.
Agora eu a sentia nervosa.
— Você pode se virar e fingir dormir e eu tentarei aceitar como um sinal de recusa. Pode me dizer um NÃO simplesmente e eu tentarei aceitar, mas não podia deixar de dizer o que estou sentindo.
Respirei fundo. Estava tremendo. Olhei-a profundamente e disse bem próxima a ela... e não sei como consegui:
— Clarice, antes de mais nada, preciso ser honesta com você... – ela, pela primeira vez, baixou os olhos como se não quisesse “presenciar” uma possível rejeição. Mas, não era bem isso... — Estou prestes a me casar. Namoro há três anos um cara e... – ela voltou a me olhar daquele jeito: — Não faça isso.
— Não farei nada que você não queira, Fê.
— Você também me atrai, mas...
Ela se mexeu na poltrona, passou as mãos pelo rosto, pela nuca, olhou-me nos olhos, naquele momento com sofrimento até.
— Podíamos passar o dia juntas. Amanhã cada uma seguirá seu destino... Se quiser desapareço de sua vida amanhã, mas fique comigo hoje.
Nossa! Não sabia o que dizer. Toda aquela situação era tensa, excitante demais, de tal modo que não me aguentava em mim. Me senti molhar, sentia a sensação da adrenalina percorrendo todo meu corpo numa excitação quase insuportável. Que coisa!
— O que acha? Por favor, fala alguma coisa porque não aguento mais sem saber... – ela implorou me olhando intensamente, tão próxima que estávamos a centímetros da boca da outra. Sentia seus olhos me queimarem, seus lábios tremiam, faíscas de desejo saindo de cada gesto e palavra.
— Venha comigo. – puxei-a impulsivamente pelo corredor do avião. O senhor sentado ao nosso lado parecia estar dopado, só dormia, nem percebeu quando passamos por ele apressadas.
Fomos até o banheiro... Aquele cubículo mesmo. Empurrei-a como pude e fechei a porta atrás de mim. Ficamos, por segundos apenas, nos olhando tão próximas dentro daquele lugar que tive minha felicidade completa naquele pequeno instante. Sem pensar em toda aquela loucura e na loucura da minha atitude extrema, puxei-a pela cintura fina e a beijei com uma vontade que esperei toda minha vida para extravasar. Meu salto atrapalhava, tive que me abaixar um pouco para alcançá-la e ela erguia um pouco os pés para poder me abraçar com força.
Sentir seus lábios delicados, que sugavam os meus era maravilhoso. Sentir suas mãos em minha nuca e sua coxa entre minhas pernas me fazia morrer em seus braços. Invadi sua boca com minha língua furiosa de um desejo que já era descontrolado... Ela a recebia com pressa e vez ou outra ouvia sua respiração forte e gemidos que me enlouqueciam.
— Temos que voltar. – eu disse sorrindo depois de quase perdermos a respiração no beijo.
— Não quero sair daqui. – ela me puxava e beijava meu pescoço com sensualidade enquanto escorregava suas mãos por baixo de minha camisa. — Não quero nunca mais sair daqui.
— Ficaremos num lugar muito mais confortável. Hoje quero passar meu dia com você.
Voltamos para nossos respectivos lugares e esperei, ansiosamente, que aquela viagem terminasse logo para que eu a levasse para uma cama.

continua...

sábado, 12 de junho de 2010

CAPÍTULO 3 – AINDA NO AVIÃO

— Acho que o universo conspirou quando te colocou do meu lado. – ela sorriu novamente depois de se sentir numa... biblioteca. — Você deve ser assistente de Freud incumbida de curar meu medo de aviões por meio da técnica de conversas absurdas...
— Você está dizendo que meu papo é absurdo?!
— Ainda não sei, mas seu método de entretenimento com certeza. – ela gargalhava divertida e me fazia rir. — Mas, de qualquer maneira, muito obrigada! Pela primeira vez não tive dor de barriga ao sentir o avião decolar.
Não entendia muito bem o que acontecia comigo tão derretida por aquela pirralha, mas acho que deuses, o universo, ou sei lá o quê realmente queriam dizer algo, ou mostrar alguma coisa.
— Agora que você já se sente numa biblioteca poderíamos nos apresentar.
— Nossa!! Claro!! Desculpa... como sou sem educação. – colocou o livro de lado e estirou a mão firme: — É um enorme prazer, meu nome é Clarice.
— Eu sou Fernanda. – sorri sinceramente. Sem armas, sem defesa, sem (muitas) estratégias – é com elas, as estratégias, que trabalho, mas não estava trabalhando ali. Sorri com carinho e, pela primeira vez, percebi que Clarice me cativava. Era gostoso conversar com ela, melhor ainda apertar sua mão que, apesar de pequena, era forte, segura... assim como seus olhos e sua voz. Nem me lembrava que estava cansada.
— Fer-nan-da... – disse pausadamente. — Gosto desse nome.
— Que bom. Pensei que te causasse alguma reação fóbica... – provoquei sorrindo.
— Não zombe da minha deficiência emocional... – ironizou com expressão de menininha travessa... ainda segurando minha mão.
— O que está lendo? – mudei de assunto retirando minha mão da dela um tanto embaraçada. Fazia tempo que não me embaraçava...
— Cecília Meireles.
— Hummm, sua biblioteca é rica... Há mais algum exemplar tão bom quanto esse por aqui?
— Queridaaa, estamos num avião!
— Estou respeitando sua deficiência emocional e embarcando em sua fantasia acadêmica. – rimos mais uma vez relaxadas.
— Dependendo do que esteja tocando no seu ipod eu te forneça um livro decente...
— Você gosta de ouvir o quê? – perguntei enquanto tirava meu blazer.
— MPB, jazz, blues, rock...
— Estou ouvindo algumas músicas de Itamar Assumpção cantadas por outros cantores de MPB...
— Então você é digna de estar numa biblioteca de verdade. Que tal a de Barcelona?
Não sei se era impressão minha, mas acho que Clarice me olhava de uma maneira estranha. Será que meu gosto musical determinou essa mudança ou eu não tinha percebido antes? Ela me analisava, via seus olhos se movimentando em direção a cada parte de mim... em alguns momentos posso até afirmar, com minha modéstia embaixo do braço, que ela se distraía olhando para mim.
— Você estará lá?
— Onde?
— Na Universidade de Barcelona... não é de lá que estamos falando?
— Ah, sim...
Eu disse que ela estava distraída.
— Vou falar sobre minha tese que trata de arte contemporânea.
— Sério?
— É. Nada de mais... Não vou encher seus ouvidos com vocabulário técnico-esnobe-acadêmico.
Ficamos em silêncio. Olhei ao redor e havia um senhor dormindo na poltrona ao nosso lado. Pensei em deixar a conversa para ela continuar... precisava saber se só vinha de mim um súbito interesse por aquela relação que nasceu depois de uma troca de lugar no avião.
— E você? O que deve fazer uma mulher em roupas de reunião executiva na Espanha?
— Uma reunião, claro! – dei um meio-sorriso e nossos olhos fixaram-se mais uma vez... Não tive vontade de me desviar deles. — Estou indo em busca de negócios para a empresa onde trabalho. Mas... não vou encher seus ouvidos com vocabulário técnico-publicitário-estratégico.
— Você utiliza estratégias de propaganda além do campo profissional? – perguntou séria.
— Como assim? – entendi a pergunta, mas queria que ela falasse mais para que, naquele momento, eu pudesse analisá-la. Isso era uma estratégia. Eu deveria ter vergonha de confessar isso.
— Você acha que consegue coisas fora do contexto profissional por meio de estratégias?
— Acho que elas me ajudam a conseguir, mas não determinam nada.
— Para utilizar estratégias é preciso ser muito racional, não é?
— Sim.
— Sou péssima estrategista.
Acho que entendi esse comentário.
— Já esteve em Barcelona outras vezes então...
— Já... já dei outros vexames como este com outras pessoas...
— E elas foram tão legais como eu? – nem sei por que fiz essa pergunta besta. Esperando confete, dona Fernanda? Sim. Esperando confete de Clarice... e os impulsos iam fugindo do meu controle com menos de cinco horas de viagem. Pelo amor de Deus, estou afundando em minhas próprias estratégias!!
Acho – pode ter sido impressão de quem já começava a fantasiar coisas – que ela levou um susto com minha pergunta, mas se recompôs e respondeu: — Não. Você é mesmo muito gentil... Você é uma pessoa legal de se conhecer.
— Tudo isso graças à minha técnica de entretenimento. – brinquei para quebrar um possível “clima”. Mas, será que estávamos em um “clima”? Ou só eu estava entendendo isso porque queria entender... porque fazia tempo que não me encantava com alguém assim. Acho que estou viajando, literalmente.
— É sério. Faz tempo que não conheço alguém tão interessante...
Acho que estávamos num clima.
Os sintomas de uma inibição começaram a se manifestar fisicamente. De repente senti um calor! Desabotoei um pouco a camisa e dobrei parte das mangas. Passei a mão por meu cabelo que vez ou outra caía no rosto, sorri um tanto sem graça... não sabia o que dizer. Ela não parava de me olhar. E continuou em sua missão de me intimidar cada vez mais:
— Você sabe que existe afinidade entre algumas pessoas, não é? Acho que temos afinidade... acho que formaríamos uma ótima dupla cômica. – sorriu.
— Tenho certeza.
Ela se mexeu na poltrona, afrouxou o cinto, sentou-se em cima de uma das pernas para que pudesse virar-se mais para mim. Suas pernas eram grossas, de uma pele morena bonita... tinha um jeito particular de se expressar, de gesticular, de explicar o que queria dizer. Nessa nova posição ficávamos mais próximas e sentia dela um leve cheiro de perfume.
— Posso te fazer uma pergunta indiscreta?
Senti um frio na espinha.
— Pode.
— Quantos anos você tem?
— Não se pergunta a idade para uma mulher.
— Mas mulher perguntando para outra pode...
— Então não é uma pergunta indiscreta...
— Vai responder?
— 32.
— Tudo issoooo!!!! – ela se espantou controlando a altura da voz, berrou cochichando (dá para entender?), com a testa franzida. Clarice parecia minha amiga íntima, sentía-se íntima e isso me deixava feliz e, de certa forma, à vontade.
— É, sei que já sou idosa.
— Não é isso. Pensei que tivesse uns 29... uma jovem executiva, dessas workaholics que só pensam em trabalho e ganham o primeiro milhão aos 30.
Não tive como conter a gargalhada. Alguém lá por perto fez sinal de silêncio.
— Muito bom saber o que pensa sobre minha pessoa, mas já passei dos 30 e nem estou perto do primeiro milhão. Mas... muito obrigada por me dar 29.
— Não por isso.
— E você?
— Ainda não tenho meu primeiro milhão, mas tenho tempo...
Ela sorriu maravilhosamente maliciosa: — Tenho 28.
— Nem tanto tempo assim... em dois anos você pensa no quê? Em ser reitora da Universidade de Barcelona?
— Você acha que acadêmico ou artista intelectual fica rico alguma vez na vida? Espero viver das glórias de minhas pesquisas. – rimos e percebi que ela também estava cansada. Só então me lembrei do meu cansaço... e me deu sono, mas não queria perdê-la.

continua...

sexta-feira, 4 de junho de 2010

O EMBARQUE - 5-6-2010

CAPÍTULO 1 – O BILHETE

É tão engraçada a sensação de que só comecei a viver a partir do momento que te encontrei...
Com você voaria até a China... mas, me espere para voarmos de volta ao Brasil.
Volto logo!!
Sua Clara.


Toda vez que leio este bilhete perco meu chão, confundo o dia, volto à anestesia diante da entrada para o embarque daquele aeroporto, de volta à realidade.
Será que tudo aquilo aconteceu numa realidade paralela, já vivemos uma tal de Matrix?!! Já temos uma realidade tão distinta da minha com todos os pontos nos “ís”? Será que foi um sonho? Em que tudo o que mais louco desejei foi possível?!
Até hoje não sei... não sei. Às vezes me questiono se tudo aquilo aconteceu... Mas, tenho este bilhete que não me deixa pensar que estou ficando louca. Ele está aqui, não tem minha letra, recebi de alguém, não fui eu que escrevi para mim mesma! Não sou esquizofrênica! Ele está aqui com as palavras que também ouvi e senti.
Parece mesmo um sonho. Ela sumiu como surgiu: do nada. Apareceu, partiu meu coração, depois foi... ficou, sei lá. Me deu o doce e depois o arrancou estupidamente de mim. E até hoje não entendi nada...
Não me transformei numa pessoa amargurada após esse episódio, acho que minha natureza nunca permitiria essa extremidade de ânimo, mas me sinto frustrada a cada vez que pego este bilhete e o leio, e sinto, mesmo que de maneira distante, aquelas sensações, aquela paixão que me consumiu mais do que os quase três anos de casamento. Aquilo foi uma paixão maior do que posso dizer por meio do que escrevo. Era a formação, o embrião de um amor intenso, extenso, para toda duas vidas. Nunca senti aquilo e, na minha realidade nua e crua, sou racional o suficiente a ponto de reconhecer que jamais voltarei a sentir o que senti naquele momento. Então acho que, por constatar isso, tenho todo o direito do mundo de ser frustrada, afetivamente falando.
Às vezes é preciso conviver com um sentimento assim, que incomoda. Existem pessoas que vivem com o ódio dentro de si e o regam com amor para que ele permaneça forte; outros alimentam a pena e passam a vida sentindo dó de si mesmos. Eu adubo minha frustração toda vez que leio este bilhete. Até mesmo a frustração é melhor que o esquecimento neste caso. Eu prefiro ser uma frustrada convicta a esquecê-la. É melhor ter a lembrança de um amor imenso e maior que tudo que já tive do que não ter nada.
Mas há um pouco de ressentimento também, uma vontade de bater nela por ter me largado lá, quase como uma noiva no altar. Se eu tivesse problemas de autoestima cometeria o suicídio... Talvez eu batesse nela e depois chorasse arrependida, mas eu nunca a odiaria, jamais. Os sentimentos ditos como ruins que tenho são superficiais. Bom, menos a frustração de tê-la perdido, deixado-a escapar... talvez o ressentimento também... mas, será que foi culpa minha?
É a frustração que alimenta minha lembrança daquele amor que tanto quis.
O oposto da frustração é a boa lembrança, pelo menos no meu caso. Tudo é muito louco no mundo dos sentimentos. Meu sentimento de frustração, que é “ruim” – pois todo mundo diz que é – dá vazão às minhas lembranças, que são maravilhosas – isso eu posso dizer. Ela me deixou a lembrança de risos insinuantes e gargalhadas gostosas, me deixou o som de sua voz sorridente, me deixou seus olhos grandes e negros de cílios compridos como pétalas de flor, a sua boca, a sua pele macia, tudo isso me deixou... na lembrança.

CAPÍTULO 2 – NO AVIÃO

Eu a conheci em 2004.
Estava exausta depois de quase 14 horas no aeroporto de Cumbica. Não era como acontece atualmente, mas, naquela época, vez ou outra já tínhamos problemas em alguns embarques. Ainda não era o caos aéreo, talvez uma prévia. Só posso dizer que, naquele dia meu voo para a Espanha teria de sair pela manhã, mas às onze da noite eu estava entrando no avião sem achar muita graça em nada. Só queria me acomodar na poltrona, fechar os olhos e relaxar. Se eu estivesse no lucro dormiria até chegar lá. Estava tão cansada... No dia seguinte teria de estar num hotel em Ávila para uma conferência de dois dias, e tudo estava tão bagunçado no escritório. Prazos, contas, projetos... e esta conferência no meio. Ok, eu já tinha ficado 14 horas no aeroporto, portanto, não havia como voltar atrás. Eu era apenas uma subordinada.
Sentei-me na poltrona do meio, tirei parte dos meus pés dos sapatos de salto apertados, desabotoei o blazer, tirei meu ipod da bolsa e, enquanto desembaraçava os fios dos fones para colocá-los em meus ouvidos e não ouvir mais nada que não fosse música pelas próximas 12 horas, uma mulher parou ao lado da poltrona do corredor e, aparentemente, ficou me observando. No começo pensei que fosse a dona da poltrona do corredor, mas ela não se mexia, então refutei a ideia; depois, sem olhar para o lado e ainda desembaraçando meus fones, pensei que fosse alguma das comissárias de bordo a fim de me dar uma bronca por qualquer motivo que eu não conseguia imaginar. Então resolvi olhar e deparei com olhos grandes e negros de uma garota de aproximadamente 18, 19 anos.
— Você quer passar? – arrisquei uma pergunta que talvez fosse pertinente, afinal eu poderia estar atrapalhando a passagem dela e... de repente a menina era muda...
Ela coçou rapidamente a cabeça cheia de cabelos lisos presos num rabo de cavalo mal feito, deu um sorriso sem graça e gaguejou na pronúncia das primeiras palavras.
— Na verdade eu... eu... Bom, na verdade eu queria te pedir uma coisa. – começou a dizer sem saber onde enfiar as mãos. Eu poderia começar a me irritar só pela introdução daquela conversa... “pedir alguma coisa?” Ora, eu nem a conheço e ela já quer me pedir algo??
Numa fração de segundos tive tempo de enrolar minhas mãos no fio dos fones, pois, caso fosse um pedido esdrúxulo, a estrangularia ali mesmo. As pessoas não têm noção do risco que correm ao aborrecer alguém que está há 14 horas num aeroporto. Mas, também durante milésimos de segundo pude observar, um tanto comovida, a vergonha com que aquela garota se dirigia a mim: — Mas, claro que se você não quiser, não tem problema... – ela não era tão menina quanto pensei que fosse. Era baixinha, magra, usava uma regata lisa, uma saia curta, carregava uma mochila ainda nas costas. Seu rabo de cavalo mal feito estava preso por um bico de pato que deixava fios soltos pelo rosto. Tinha olhos negros vivos e brilhantes, grandes, que sorriam com ela, mas não o sorriso sem graça com o qual ela sorria agora. Tudo isso dava a ela um ar de menininha... Tudo isso eu observei em milésimos de segundo. — É que, me perdoa, mas morro de medo de altura e não consigo ficar perto da janela do avião... mas era o último lugar disponível... – sem que ela terminasse sorri e acho que meu sorriso de mulher aparentemente segura causou nela um certo alívio imediato.
— Você quer trocar de lugar comigo?! – perguntei, mas, na verdade, estava constatando o rumo da conversa e o pedido que ela enrolava tanto em fazer.
— É, eu pretendo pedir isso... se você não se importasse... se não fosse muita cara de pau de minha parte...
Pois é. Um diálogo inusitado, digno de uma crônica se eu fosse boa com as palavras escritas. A crônica teria segmento assim: “ela sorriu o sorriso sem vergonha, o sorriso da mulher que provavelmente ela é: espontânea. Algo aconteceu em mim quando, após o sorriso da vergonha, abriu-se o sorriso da alegria quase infantil de conseguir o que queria”.
Me encanto com algumas personagens que atravessam minha vida sempre tão regrada, mas me encanto muito mais com personagens que fazem parte de situações como essa. Não ligava muito para esse papo de destino, caminhos que se cruzam, vida escrita nas estrelas etc., etc... mas, de repente, – não sei explicar – aquele acontecimento tão banal tomou em mim a forma de um momento determinante.
— Claro que não me importo! – tentei conter meu encantamento desviando-me de seu olhar grande e negro e me levantando para passar para a poltrona da direita, próxima à janela.
Ela finalmente tirou a mochila das costas, retirou um livro de dentro dela, guardou-a no bagageiro e sentou-se ao meu lado calmamente. Já não parecia a menininha envergonhada de segundos atrás. Agora eu já podia chutar melhor sua idade, mas achava que não teríamos tanto assunto para isso.
— Olha, muito obrigada. É sempre muito difícil, para mim, viajar de avião. – disse ajeitando-se na nova poltrona. Olhou-me de frente com voz segura e sorriso sem a vergonha.
— Eu imagino como deve se sentir, mas... se te consola: o avião ainda é o meio de transporte mais seguro.
— Bom, para onde vamos é o único meio de transporte, portanto, não me convenceu.
Sorrimos.
— Mas tem o navio. – desafiei e ela mordeu o lábio inferior.
— Não... não dá.
— Você enjoa?
— Putz, era só o que me faltava: ter medo de altura e enjoar no mar... – fez uma careta. — Não sou tão problemática assim! – sorriu mais uma vez o sorriso que me mostrava cada vez mais quem ela era. — Não dá porque preciso estar na Espanha amanhã e depois de amanhã em Barcelona.
— Verdade, se fosse de navio perderia seu compromisso...
O piloto do avião nos interrompeu quando começou a fazer seu discurso de boas-vindas e blá-blá-blá... Repentinamente sorriso e olhos negros e brilhantes sumiram numa seriedade assustada. Ela parou de falar e se pôs tensa na poltrona. Colocou o cinto de segurança e confirmou se ele estava preso mais de uma vez. “Minha querida menina, se o avião cair não adiantará estar presa num cinto...”. Senti pena daquele estado de fobia.
— Fique tranquila. A informação que te dei sobre a segurança dos aviões é séria.
— Acredito em você, mas meu subconsciente não me ouve nessas horas. – respondeu olhando para frente apertando os apoios de braço. Pensei no que poderia fazer para entretê-la a ponto de não perceber a subida do avião. Por outro lado pensava no que me levava a tomar tal atitude. Tamanha solidariedade a uma pessoa que eu mal conhecia... Tudo bem, sou uma pessoa boa, minha mãe sempre disse... mas sentia uma vontade enorme de ser mais do que boa para ela.
— Faz tempo que não acontecem acidentes aéreos no Brasil...
— Você não está me ajudando muito...
— Talvez seja melhor trabalharmos com estatísticas no seu tratamento contra a fobia de aviões. Como chamamos as pessoas que sofrem de fobia de aviões?
— Aerofóbicos.
— Mas, você tem medo de roda-gigante, por exemplo?
— Prefiro não estar nunca em lugares muito altos.
— Então nunca passeou no bondinho do Pão de Açúcar, no Rio de Janeiro...
— Lá já fui.
— Mas então seu problema é específico com aviões...
— Não sei, só sei que passo mal...
— Enjoa?
— Não, penso que vou morrer a qualquer momento.
— Eu penso que vou morrer a qualquer momento quando estou no centro de São Paulo...
— Ah... isso eu penso também, mas no chão eu posso sair correndo...
— Entendi.
Não poderia deixar o assunto morrer, quer dizer... : — Mas você ficará tensa por 12 horas? Não há nervos que resistam...
— Não, só na subida, depois eu finjo que estou numa biblioteca.
— Por isso o livro.
— É.
— Pode ficar tranquila então... o avião já deve estar há uns dois minutos sobrevoando São Paulo.