sábado, 25 de setembro de 2010

CAPÍTULO 33 – FINAL... FELIZ

— Laís?
— Oi, Clarinha...
— Desculpa não ter respondido suas ligações no fim de semana, estava muito confusa... precisava pensar.
— Imaginei. Ver Fernanda depois de tanto tempo não deve ter sido fácil...
— Isso mesmo.
— Vocês se encontraram depois do dia da festa?
— Não..., ..., acho mesmo que não temos mais nada para conversar. Afinal, ela não foi ao encontro, virou a página...
— Não está na hora de você fazer o mesmo?
— ...
— Clara?
— É por isso que estou ligando...
— Não sei se entendi...
— Quero que você me ajude a esquecer Fernanda de uma vez por todas.

***

Quando desliguei o telefone, com um sorriso no canto dos lábios e apertando o aparelho contra o peito, Gustavo estava sorrindo esparramado sobre os almofadões da sala de TV. Ele ouviu a conversa e entendeu, óbvio.
— Você é mesmo a mulher mais foda que eu conheço.
Olhei-o maliciosamente e joguei-me entre suas pernas.
— Não falei que a teria. – peguei de sua mão o copo de vodka e tomei tudo em um gole. — Ainda vou desfilar com ela embaixo do nariz de Fernanda. Aquela cadelazinha vai se arrepender de ter me dado um tapa.
— Vocês marcaram onde?
— No apartamento dela, hoje á noite...
— Hummm, então creio que dormirá fora de casa...
— Você tem alguma dúvida?

***

Quando Clara desligou, Nana esfregou as mãos com expressão de menina travessa e explodiu numa gargalhada contagiante. Ela parecia mais determinada em se vingar de Laís do que nós. Na verdade, eu só pensava em estar a sós com Clarice.
Se bem que é muito agradável estar na companhia de Ana Paula. A leal amiga de Clara, fiel escudeira, é mesmo um encanto, uma raridade, e fico pensando que nesta vida, ter amigas como Nana é ter quase tudo.
— Nana, queria te agradecer por tudo. – não resisti e disse depois que as risadas cessaram e Clara enroscou-se nos meus braços.
— Não há de quê... pelo menos agora Clarice me deixa em paz.
— Eu te perturbava tanto assim?
— Demais... ao ponto de eu ter que resolver isso. – provocou sarcasticamente. Depois sorriu e: — Eu só não aguentava mais te ver agoniada com essa história mal resolvida. E como as pistas foram caindo no meu colo, não foi difícil bancar seu anjo da guarda...
— Você foi NOSSO anjo da guarda. – respondi.
Nana ficou um instante em silêncio sob nosso olhar, mas depois sorriu maliciosamente, dirigindo-se à Clara.
— Lembra quando te contei sobre a primeira vez que vi Fernanda?
As duas riram cúmplices e não entendi.
— O que você contou? – fingi irritação enquanto elas trocavam olhares decidindo quem falaria.
— Nana ficou encantada com você, te achou linda.
— Imagina eu pegando a mulher da Espanha da minha melhor amiga, e Laís também pegando a mulher que eu estaria pegando que é a mulher espanhola da minha melhor amiga...
Gargalhamos com a rede sexual que Nana traçava.

Quando nosso anjo da guarda saiu, continuamos abraçadas no sofá da sala olhando pela janela do apartamento, que oferecia uma vista linda da cidade de São Paulo. Nunca me senti tão completa, feliz, segura de que a felicidade não me escaparia dessa vez. Ficamos em silêncio por um tempo, só nos reconhecendo. Acariciava os braços de Clara, entrelaçava meus dedos nos seus, aconchegava-me mais ao seu corpo, fazia silêncio para ouvir sua respiração, o bater do seu coração, para sentir seu cheiro, seus poros... Clarice me acalmava, apaziguava meu espírito.
— Tenho uma coisa para você. – disse ela cochichando ao meu ouvido e me fazendo arrepiar.
Segurou meu rosto com as mãos, com carinho, e passou a acariciá-lo com as pontas dos dedos. Olhava-me fixamente, descia seu olhar para minha boca, meu nariz, meus olhos... e meu coração disparava e um calor subia. Puxou sutilmente meu rosto para mais perto e começou a beijá-lo e a mordiscar o lóbulo de minha orelha. Os pelos dos meus braços se eriçaram. Seus lábios se abriram num sorriso e sua respiração começou a se alterar quando uma de suas mãos começou a explorar meu ventre. Imediatamente meu estômago deu voltas, minhas pernas amoleceram e o frio na espinha anunciavam o que eu esperava há tanto tempo... me angustiava não conseguir aproveitar tudo, tamanho era meu nervosismo. Mas me aliviava a certeza de que eu teria todo o tempo do mundo.
Minha mão percorreu suas costas devagar até chegar à nuca. Acariciava-a enquanto sentia seu corpo tensionar contra o meu. Meu tesão era absurdo, queria Clarice com urgência, mas, ao mesmo tempo, queria aproveitar cada segundo, cada carinho. Aproximei meu rosto lentamente do seu, para não quebrar o momento de silêncio que dizia tanto... nosso corpo respondia a todas as perguntas que pudessem surgir naquele instante. Clara me encarou novamente, olhou-me fundo e, com certeza, leu o amor que sinto. Sorrimos e nossos narizes se encostaram antes dos lábios. Beijei-os devagar para curtir a lembrança da primeira vez sublime que os toquei. Eles estavam ali, eram os mesmos... eu não imaginava beijar outra boca que não fosse a dela.
Clara passou uma das mãos por baixo do meu cabelo para segurar minha nuca enquanto me beijava cada vez mais intensamente.
Fiz carinho nos seus seios, que cabiam perfeitamente em minhas mãos, e quando senti os mamilos enrijecidos não aguentei de vontade, abri sua camisa, tirei seu sutiã e os tomei na boca com sede. Clara gemeu alto numa explosão de sensações enquanto eu matava a fome daquele corpo que só poderia ser meu... Clara acariciava meu cabelo e forçava minha cabeça para que eu não parasse de chupá-los. Tirou minha blusa, abriu o zíper da minha calça e entendi que era hora de irmos para a cama. Mas não deu tempo, não aguentávamos mais esperar e o sofá estava bem confortável. Tirei o resto de minha roupa enquanto deixava que ela me beijasse. Jogou-se por cima de mim e mapeou meu corpo com toques, beijos, saliva, desejo... devorou-me, segurou com força minhas pernas, olhou-me com olhos em brasa, encaixou-se em mim... beijou minha virilha, encontrou meu ponto de prazer extremo... me deu mais carinho, me tomou com suavidade, força, malícia, ternura, voracidade, paixão. Clarice ainda sabia meu corpo de cor... me enlouquecia. Mesmo assim, quase explodindo no orgasmo que eu guardava há tanto tempo para ela, interrompi o carinho que sua língua fazia em mim porque queria dar a ela o mesmo prazer, no mesmo momento. Virei-me por cima de seu corpo e comecei a fazer a mesma carícia. Senti o ponto de Clara em êxtase, encharcado, pronto para explodir... e explodiu, explodimos, e a liberdade e o início de uma vida nova se puseram diante de nós.

***

A sala de jantar estava à meia-luz. A mesa foi cuidadosamente posta na varanda, sob a lua-cheia que iluminava uma noite de primavera agradável. Duas velas acesas davam o toque romântico à cena: a toalha, os pratos e talheres caprichosamente dispostos. As taças de cristal e o vinho tinto pronto para ser aberto. Meu vestido era solto, com um decote generoso, valorizava meu colo, meus seios. Passei batom, deixei meus lábios bem contornados, convidativos... esperei calmamente por Laís. Coloquei música, passei perfume... olhei o ambiente: uma noite perfeita.
Quando abri a porta, percebi que ficou surpresa com o visual... meu meio sorriso era sensual e seu olhar, intenso. Abri passagem para que ela entrasse. Laís estava, como da vez em que ficamos juntas nas instalações da exposição, de calçado baixo, uma sapatilha que combinava com o vestido longo, que a deixava ainda mais alta e, sinceramente, bonita... malditamente bonita.
Já no meio da sala, correspondeu-me no sorriso e beijando-me demoradamente no rosto.
— Clara, você está deslumbrante.
— Especial para você. – fiquei parada diante dela, não muito próxima. Laís aproximou-se e fazia menção de tocar-me para me beijar. — Calma. – segurei sua mão que alcançava meu rosto. — Temos a noite inteira pela frente. – puxei-a para que se sentasse à mesa enquanto eu abria o vinho devagar, em pé, diante dela.
— Tantas coisas aconteceram nesses últimos tempos. Essa vida é mesmo muito engraçada, não é? – vagarosamente sacava a rolha da garrafa enquanto conversava com Laís, que me observava atenta. — Fiquei três anos atrás de Fernanda, três anos realmente doloridos, em que deixei minha vida amorosa estacionada, esperando resolver essa pendência, preencher essa lacuna imensa que me consumia, me entristecia. – enchi seu copo, esperei que tomasse o primeiro gole e aprovasse o vinho. Depois coloquei um pouco no meu copo e brindamos, mas continuei: — Então descubro que você, a pessoa que, aos poucos, ia preenchendo esse vazio, conhece Fernanda... e me revela coisas que não esperava, e me conta que ela não foi ao encontro, desmontando em mim a ilusão de que aquela mulher também me esperava.
— Querida, porque não esquecemos tudo isso e começamos NÓS, do zero. – Finalmente disse Laís mexendo-se na cadeira um tanto inquieta. Sentei-me finalmente e fiquei em silêncio deixando que ela falasse. — Você é a única mulher que realmente mexe comigo... eu abriria mão de relacionamentos esporádicos e sem importância para assumir um compromisso com você, Clarinha, porque sinto-me extremamente atraída, porque desde muito tempo sou apaixonada por você e tenho certeza de que a faria feliz. – tomou um gole do vinho. — Esqueça Fernanda. Você mesmo disse que não há mais nada a dizer entre vocês. Deixe que ela continue levando a vidinha certinha dela e vamos construir uma juntas.
— Você abriria mão de seu relacionamento esporádico com Fernanda? – perguntei calmamente olhando-a nos olhos. Percebi que num primeiro momento ela não entendeu a pergunta, mas depois sorriu embaraçada. Estava começando a ficar divertido.
— Como assim? Não tenho nenhum relacionamento com Fernanda. Eu disse a você que mal nos falamos... na festa eu era a anfitriã, Clara...
— Sei. – continuei analisando sua reação com um leve sorriso. — Vamos jantar. – e toquei o sininho que estava sobre a mesa.
Da cozinha, passando pela sala de estar e chegando à mesa, na varanda, sustentando uma bandeja tampada, surgiu Fernanda absolutamente irresistível num vestido de noite, de salto, com cabelo cuidadosamente arrumado e uma leve maquiagem que destacava seus olhos verdes e sua boca benfeita. A princípio, Laís apenas me olhava e mal se deu conta da aproximação de Fernanda, mas, quando a viu, levou um susto e sua fisionomia se transformou. Estava vermelha e paralisada. Fernanda a encarou com um sorriso sarcástico e eu, agora, mera espectadora.
— Boa-noite, Laís. – cumprimentou-a deixando a bandeja sobre a mesa e sentando-se ao meu lado, servindo-se do vinho friamente. Laís estava fervendo olhando-nos em silêncio. — Como vai o rosto? Acho que há base demais nele... talvez porque haja alguma marca da minha mão espalmada. – Fernanda sorriu deliciada enquanto eu tentava apenas observar a cena. — Acho que você esqueceu de dizer umas coisas à Clarice, mas vou refrescar sua memória. Esqueceu de dizer que ficamos juntas. Isso depois que soube que minha história se referia à Clarice... Até transamos, lembra?... e tenho que reconhecer que para um sexo casual, sem importância, você faz direitinho. Escondeu-me que conhecia Clarice. Mas você é tão amadora nessa arte de enganar as pessoas que largou pistas por todos os lados... esqueceu-se que havia alguém mais esperto que você: Nana. E chegou ao cúmulo de ser ingênua achando que não iríamos descobrir suas armações ridículas.
Fernanda achou melhor parar e observar uma Laís muda, transtornada, mas que mantinha a pose.
— Vocês poderiam se poupar desse papelão...
Minha vez de sorrir.
— Imagina que não a receberíamos em grande estilo... – comentei erguendo meu copo para ela.
— Clarice, você não deveria brincar assim comigo... tudo o que fiz é porque te amo. Não é possível que prefira uma pessoa confusa e covarde como Fernanda.
Apertei a mão de Fernanda por baixo da mesa.
— Laís, você é arrogante, pretensiosa, desonesta... De verdade não é o tipo de pessoa que me atraia... e mesmo que você tentasse mudar por minha causa, a falta de caráter é irreversível, querida. – ficamos nos olhando por um momento. — Agora, se nos der licença... tenho um jantar com minha namorada. – olhei para Fernanda e sorrimos ignorando a presença de Laís, que largou o guardanapo sobre a mesa, pegou sua bolsa e saiu como um vulto batendo a porta com força atrás de si.
— Finalmente a sós. – disse enquanto me aproximava para tomar a boca da mulher que eu amava tanto e esperei, e acreditei que ela seria minha. Agora minha vida estava completa.
Jantamos, bebemos, fizemos amor a noite inteira. Ter Fernanda nos meus braços, sem pressa, sem a sensação de não saber o que acontecerá no dia seguinte é maravilhoso.
Procuramos juntas seu novo apartamento. Encontramos um a algumas quadras do meu. Nana ajudou na mudança, afinal, eu evitava encontrar Pedro, pelo menos enquanto durasse o processo de separação. Contei aos meus pais toda a looonga história e eles ficaram emocionados (um pouco ressentidos por eu não ter contado antes) e receberam Fernanda muito bem, que logo passou a fazer parte das reuniões, dos jantares, almoços, das festas, viagens, enfim... vida em família, completa. Fê teve mais dificuldades com seus pais. Resolveu contar a história resumidamente, mas não fui muito bem vista (nada é perfeito). De qualquer maneira, minha mulher estava mais forte, decidida... transferia, gradativamente, a segurança que ela tinha nos assuntos do trabalho, para sua vida pessoal e isso me enchia de mais amor e desejo por ela.
Não vimos mais Laís. Ela circulava em nosso meio, mas evitávamos encontros desagradáveis. Nana se encarregou de contar todas as armações dela para nossos amigos e, por isso, a artista-destaque-dos-últimos-tempos encontra-se, no momento, na geladeira.
Continuo dando aulas na faculdade cliente de Fernanda, que contrata os serviços de Nana. Nessa rede de coincidências ainda figuram Júlio, melhor amigo de Fernanda, que é casado com Marcelo, meu fisioterapeuta. Aí fico pensando: nada acontece por acaso... de uma forma ou de outra iríamos nos encontrar porque o que a vida nos reserva é realmente nosso.

FIM.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

CAPÍTULO 32 – FINALMENTE

No domingo tratei de passar na casa dos meus pais, depois de meses de fugas, fingimentos e disfarces, e dizer claramente, com todas as letras, que não darei a eles o neto que tanto querem e que estava me divorciando de Pedro. Sim, eu sou uma ovelha negra, assim como na música da Rita Lee.
Ouvi um sermão em conjunto e um individual, cada um defendendo a importância da família, do casamento como auge da vivência humana e da “função” de um filho nesse mecanismo programado. Eu os ouvia e pensava: “eles não fazem ideia do que estou passando, muito menos do que preciso para ser feliz.” Depois de perceberem que eu estava irredutível, amenizaram o tom, mas os olhares ainda me acusavam: “fracassada”.
No caminho de volta passei, por acaso, por dois plantões de venda de imóveis na zona Sul da cidade e comecei a fazer as contas de tempo e dinheiro que precisaria para me mudar.
Júlio me ligou mais de uma vez e convidou-me para tomar alguma coisa num bar qualquer para conversar sobre qualquer coisa, ou sobre o que aconteceu na sexta-feira. Agradeci imensamente o carinho, a preocupação, mas voltei para casa a fim de reorganizar minhas coisas.
Olhei um bilhão de vezes para o celular, mas resolvi que aquele não era um bom dia de ligar para Clarice.

Na segunda levantei-me cedo, tomei um bom café e liguei para meu advogado, que deu início à papelada do divórcio. Sentia-me vazia, como uma casa sem móveis, mas prestes a ser mobiliada do meu jeito... agora eu escolheria o que iria dentro de mim, seria do meu gosto. Ou seja, estava vazia, mas com uma vontade imensa de recomeçar.
Às dez fui para a agência, assinei contratos, notas e consultei minha agenda. Logo mais teria reunião com Nana.

— Oi, Nana. – cumprimentei-a assim que fechei a porta da sala de reunião atrás de mim.
— Oi, Fernanda. – respondeu levantando-se e olhando-me com ansiedade.
Eu também estava ansiosa e muito curiosa, mal conseguia olhar para ela... mas não queria transmitir isso naquele momento. Só depois do trabalho terminado quero saber como ela sabe de minha história com Clarice e desde quando ela e Laís estão juntas.
Sentei-me próxima a ela.
— Você me trouxe o restante das ilustrações?
Parece que Nana foi chamada de volta à Terra com minha pergunta.
— Nana?
— Oi, desculpa. Estão aqui. – atrapalhadamente retirou da enorme pasta o resto de material. Enquanto folheava, observava, analisava e anotava, sentia os olhos de Nana não sobre o trabalho avaliado, mas sobre mim. Continuei o que fazia tentando me concentrar, mas, assim que fechei o material, larguei a caneta sobre a mesa e perguntei o que estava explodindo em mim:
— Nana, como você sabe o que houve entre mim e Clarice? – perguntei de repente encarando-a, com a voz trêmula.
Parece que ela já esperava a pergunta, à queima-roupa. Nana suspirou, desviou-se do meu olhar, dedilhou sobre a mesa antes de começar.
— Você me contou, Fernanda. Você me disse que esteve na Espanha em 2004. Eu já sabia a história de Clarice detalhadamente, então, foi só juntar as peças... época em que você esteve em Madri, seu nome... enfim...
— Você, amiga dela, juntou peças depois de tanto tempo? Não era mais fácil a própria Clarice ter me ligado e dito que foi apenas uma diversão? Que relação você tem com essa história?
— Nenhuma, sou apenas a melhor amiga de Clarice que prometeu ajudá-la.
— Ajudá-la por quê? Por que precisou juntar peças?
Nana deu um meio sorriso e voltou a me olhar.
— Depois que descobri que você era a Fernanda que Clarice procurava, levei seu telefone a ela.
— Ela tinha meu telefone, Nana. Eu tinha o dela e tentei ligar várias vezes, mas nunca consegui falar. – estava ficando nervosa porque não entendia. — Mas ela deve ter perdido, jogado fora e se arrependido, sei lá.
— Ela perdeu, sim, no atentado terrorista ao metrô de Madri.
— Ela não estava em Madri naquela manhã, ela vinha de Barcelona... marcamos no aeroporto.
— Clara voltou na noite anterior com uma amiga. Ficou hospedada em Madri até pegar aquele metrô às sete e meia para te encontrar, Fernanda.
Suspendi a respiração e senti uma vertigem. Um nó na garganta me impedia de dizer qualquer coisa. Antes que Nana terminasse, tudo se esclarecia e eu sentia morrer por dentro de tanto remorso. Baixei a cabeça com as mãos no rosto.
— Você pode imaginar por que ela não foi te encontrar. Mas não faz ideia do que foi a vida de Clarice após esses dois acontecimentos: te conhecer e estar naquele metrô justamente no dia em que voltariam juntas para o Brasil. – Nana fez uma pausa e seu tom de voz mudou: — Se bem que você não foi...
— EU FUI! EU FUI! – disse desesperada, explodindo em um choro copioso. — Eu disse que não fui porque durante todo esse tempo guardei um ressentimento absurdo, achei que ela não tinha aparecido porque tudo foi muito mais importante para mim do que para ela...
— Você não acreditou no amor dela...
— Nana, ela me disse que viria de Barcelona... depois tentei ligar angustiadamente, sem retorno... – estava sem ar.
— Não havia mais celular, Fernanda, nem seu cartão com telefone... nem nada. Clara ficou em coma durante semanas, demorou anos para estar como agora.
— A bengala...
— É... provavelmente ela carregará essa “lembrança” para o resto da vida.
— Meu Deus.
Ficamos em silêncio por um instante. Eu só conseguia chorar, e Nana me estendia lenços de papel.
— Desde que Clarice recuperou os movimentos e voltou a ser independente, dona de suas vontades, seu único objetivo era te reencontrar para dizer que cumpriu o prometido, ou pelo menos tentou. – Nana segurou forte minha mão e me olhou com olhos lacrimejantes. — O que aconteceu a partir desse objetivo traçado por ela foi uma sequência de coincidências que ajudou vocês a se reaproximarem.
— Preciso vê-la.
— É para já.

***

Acordei ansiosa na segunda-feira.
Nana tinha me pedido para esperar, mas até quando? Precisava, sim, confiar nela e fazer tudo o que mandasse porque essa pessoa simplesmente encontrou Fernanda, passou-me seu telefone e colocou-me diante dela. Nana deveria trabalhar para a Interpol.
Tomei um bom banho, arrumei-me, tentei ler, assistir televisão e preparar aula. Não consegui me concentrar em nada. Só planejava duas coisas: dizer poucas e boas para Laís e conversar de verdade com Fernanda porque precisávamos esclarecer muitas coisas: ela está de fato com Laís? Ela, afinal, é casada ou não? Mantém um relacionamento aberto? Tantas coisas que não entendo... Parece que a única que entende tudo perfeitamente é Nana e está trabalhando como operária para me entregar esse quebra-cabeça pronto.
Mamãe me ligou e conversamos, mas nada funcionava direito na minha mente perturbada (até me esqueci que ela se convidou para vir almoçar comigo antes de ir a uma consulta médica). Estava impaciente, morrendo de vontade de pegar minha bolsa, chamar um táxi e ir para o apartamento de Laís cuspir na cara dela. Nojenta. Ela sabia do meu caso com Fernanda, a vaca estava com nós duas! Ela retardou um encontro, ela jogou e se divertiu com a nossa história de maneira tão sórdida, insensível. Que deprimente.
Ao meio-dia mamãe apareceu e eu havia me esquecido que ela apareceria. Preparei alguma coisa rápida, conversamos amenidades e, óbvio, ela percebeu que eu estava diferente, muito agitada e quis saber o que se passava. Pedi para ela esperar, assim como eu estava esperando acontecimentos acontecerem.
Dei-lhe um beijo no rosto e ela se foi.
Cruzava os dedos enquanto ouvia música. Liguei para Nana algumas vezes, mas ela não atendeu.
Não aguentava mais. Peguei minha bolsa e me dirigi à porta quando o interfone tocou. Era Nana subindo. Larguei a bolsa novamente e esperei andando em círculos na frente da porta.
Campanhia.
Abri e Nana, sorridente, ficou diante de mim, parada à porta.
— Entra criatura, vai ficar parada aí?! – Nana não sabia a hora de brincar. Virei-lhe as costas e caminhei em direção à sala.
— Clarinha, trouxe alguém para você.
Quando me voltei para a porta Fernanda estava lá, com olhos e nariz vermelhos. Acho que meu sorriso foi se abrindo aos poucos, mas não consegui me mexer, minhas pernas simplesmente travaram e só conseguia me apoiar na bengala.
— Bom, o serviço de entrega precisa resolver algumas coisas, portanto, fiquem à vontade. – Nana colocou Fernanda para dentro e fechou a porta atrás de si.
— Acho que agora conseguiremos falar e ouvir... não há barulho. – Fernanda começou.
— Sim... e não estamos voando. – respondi encantada, com meu coração disparado, gritando de alegria. Ela sorriu e se aproximou devagar.
— Precisa de ajuda? – perguntou olhando para a bengala.
— Não, eu e ela já somos íntimas... mas podemos nos sentar.
Sentamo-nos e eu não conseguia parar de olhar para ela feito boba. Estava me controlando, apertando as mãos para não abraçá-la e sentir seu corpo, que me fazia uma falta tão absurda que doía. Estar diante de Fernanda era como encontrar meu oásis no deserto depois de anos de procura, de caminhada (a metáfora é ridícula, mas é isso mesmo).
Ela, de repente, ficou séria me observando, com os olhos transbordando. Fechou os olhos e chorou. Esperei pacientemente ela encontrar seu momento. Eu também chorava por dentro, mas de alegria... meu prêmio estava ali, diante de mim... não teria mais que ter pressa, nem ir a lugar algum.
— Clara, eu queria que você me desculpasse por duvidar...
Foi o que ela disse. Percebi que mais do que os desencontros e os mal-entendidos, o que a perturbava era seu próprio sentimento.
— Como você poderia saber...
— Eu poderia ter ido em busca de você. Se, de fato, eu não ficasse lamentando meu ego ferido, teria descoberto que você estava entre as vítimas do atentado.
— Fernanda, isso agora não importa... talvez na época você não estivesse segura dos seus sentimentos porque também não foi ao encontro... mas está aqui agora e tantas coisas aconte...
— Eu fui, Clara. Estive lá te esperando. Quando você não apareceu e tentei te ligar e você não me respondeu achei que tudo tivesse sido passageiro... não acreditei em você quando disse que queria voltar comigo para ficarmos juntas... fiquei magoada todo esse tempo, não me importei com os motivos que pudessem tê-la impedido de estar lá.
Meu choro era de alívio. Ela esteve lá.
Aproximei-me de Fernanda e, delicadamente, fui me enlaçando em seu pescoço para abraçá-la com força. Um contentamento, um conforto, uma paz indescritíveis tomaram conta de mim enquanto soluçávamos juntas, abraçadas, como se o tempo não tivesse passado. Meu coração pulava, soltava fogos, gargalhava e eu passava uma de minhas mãos em suas costas, consolando seu choro, seu desabafo.
Ficamos assim durante muito tempo, em silêncio, até que nos acalmássemos. Depois, segurei seu rosto, enxuguei suas lágrimas e dei-lhe beijos delicados espalhados sobre sua face enquanto seus olhos verdes me olhavam sorrindo.
— Fernanda, durante todo esse tempo, não deixei de te amar.

continua...

sábado, 18 de setembro de 2010

CAPÍTULO 31 – UM MOSAICO DE ACONTECIMENTOS

— Eles sabiam o tempo todo, Júlio! Fui uma idiota! Me fizeram de idiota!
— Minha querida, eu não sei da história, mas desconfio de que Gustavo é um grandessíssimo safado.
Estava tremendo, totalmente sem condição de dirigir. Ainda bem que Júlio apareceu, socorreu-me porque nunca me senti tão sozinha. Quando se está em perigo ou perdida, sempre se espera que a pessoa que você ama esteja com você... mas a pessoa que mais amo é Clarice, que está com Laís, que pensei que me amava.
Fui manipulada. Certamente riam de mim. Quem ria de mim? Gustavo com certeza... Laís o tempo todo, divertiu-se bastante comigo sabendo que eu sofria por Clarice... ela sabia a quem me referia, sabia e estava abraçada a Clarice. Clarice se divertia também? Não sei... a vi me olhar assustada, chocada até. Será que fomos usadas?
Eu vi Clarice diante de mim depois de três anos daquele encontro em que declaramos que não nos separaríamos mais.
Estava cansada de tudo isso, parecia um pesadelo sem fim. Preferiria que nada do que aconteceu acontecesse (nem meu encontro com Clara), só para que eu pudesse ter a mim novamente, pois parece que, aos poucos, ia perdendo o juízo de quem eu era. A dor e a confusão eram imensas.
Não tinha mais Clarice, nem Laís, nem Pedro... só a mim mesma, e eu estava me perdendo.
Júlio respeitou meu silêncio e não me fez perguntas até me deixar na porta de casa. Lá chamou um táxi e disse que voltaria para a festa a fim de encontrar Marcelo.
— Muito obrigada, Júlio. Não sei o que seria se você não me trouxesse.
— Estarei por perto quando precisar. Acabei de me autonomear seu anjo da guarda. – sorriu. — Querida, seja lá o que tenha acontecido, não deixe barato... você não merece.

***

— Laís é uma filha da puta, Clarice! Será que você ainda não enxergou isso?
Nana dirigia em alta velocidade, costurando entre os carros, estava furiosa e descontava sua ira no pedal do acelerador. Chegava à conclusão de que ela estava mais perturbada do que eu.
Como eu estava?
Poderia estar maravilhada com a visão que tive: Fernanda diante de mim, tão linda, tão mulher... os cabelos castanhos claros soltos, repicados cobrindo parte dos ombros nus; os olhos verdes fixos nos meus, os lábios entreabertos torneados pelo batom. O corpo, a roupa, um colar, os brincos e um grande anel na mão direita... como sempre elegante, linda. Ela foi minha há três anos, durante poucas horas, fizemos amor, o amor mais profundo que já experimentei, que mudou minha vida... na verdade, acho que Fernanda a tirou de mim e procuro recuperar o controle dela desde aquele dia.
A mulher do voo estava quase ao alcance das minhas mãos novamente, mas havia uma Laís dissimulando e um marido que se aproximava e, provavelmente, nem imaginava o que aconteceu entre nós.
Mas estou em pedaços. E quando acho que os pedaços já estão bem quebrados, vem outro acontecimento que os quebra ainda mais, para ficar mais difícil colar... e levar mais tempo.
— Você percebeu que Laís estava tentando impedir o encontro de vocês?
— Você não acha isso tolerável, já que vocês mesmos dizem que ela é apaixonada por mim? – respondi em um rompante de raciocínio lógico em meio a toda aquela loucura.
— Mas ela não tem o direito. Ela e Gustavo estão de armação para cima de vocês...
— Nana, Fernanda está casada. Nana, ela não foi ao encontro. – tentei frisar os motivos pelos quais nosso reencontro não causou um abraço apertado.
Nana balançava a cabeça em uma negativa inconformada.

***

— Você não disse que ia dar um jeito de elas não se encontrarem na festa? – perguntei tirando os sapatos com os próprios pés e largando-os pelo tapete da sala.
— Não deu. Aquela Nana atrapalhou tudo! – respondeu passando a palma da mão pelo rosto. — Sua aprendiz de trepada me bateu, sabia?
— Claro que soube! As pessoas adoram um barraco e esse tipo de fofoca chega a todos os ouvidos em questão de segundos. – preparei um drinque que me ajudaria a dormir. — Quase que esse babado acaba com minha festa... e se acabasse, acabaria com você.
— Fiz o que pude, ninguém mandou ficar com as duas. – respondeu pouco se importando, afrouxando a gravata.
— Mas acho que fico com uma, pelo menos. – disse pouco me importando, virando a dose de uísque.
— Acha mesmo?
— Sim. Clarice sabia que eu conhecia Fernanda... Clarice pensa que Fernanda não foi ao tal encontro babaca... Clarice conheceu o marido de Fernanda...
— Você está muito confiante.

***

Peguei meu travesseiro e cobertor e fui dormir no quarto de hóspedes.
Dormir é modo de dizer, claro. Não consegui... de novo.
Chorei, parei de chorar, pensei, chorei novamente, senti raiva, ódio, pena de mim... meu espírito passava por uma tempestade de sentimentos e meu corpo estava exausto, mas não se entregava ao sono.
Lembrei-me do olhar de Clarice. Nos poucos flashes em que o tive nos meus olhos vi espanto e acho que lágrimas. Ela estava linda. Meu coração parou quando a vi, pensei que fosse desmaiar tamanha foi a adrenalina. Aquela mulher com pose de menina universitária não existia mais, pelo menos não ali. Amadureceu, estava mais magra, com a fisionomia mais séria, altiva. Usava uma bengala. Não tive tempo de reparar muito, mas parecia ter habilidade com ela, o que me parecia que a usava há algum tempo.
Ficamos uma de frente para outra por tão pouco tempo, mas tempo suficiente para saber que preciso ter a chance de conversar com ela de verdade porque aquele olhar não era de indiferença ou de um susto passageiro. Não quero mais conversas vazias e constrangedoras ao telefone... Por que Nana fez tanta questão de colocar-me frente a ela... e como Nana sabe de tudo? Todos sabem de tudo, parece que a única que não sabia de nada era eu!
Olhei para o rádio-relógio: três da manhã; três e meia; quatro; quatro e quinze; quatro e meia; cinco... peguei no sono.

Acordei às oito disposta a resolver uma coisa.

***

Campainha?
Quem é capaz de acordar uma pessoa às nove da manhã de um sábado? Pior, tocando a campainha alucinadamente. Pior ainda, a portaria ter permitido isso! Um absurdo...cabeças vão rolar depois disso!
Olhei pelo olho mágico, virei-me de costas para a porta e encostei-me nela não acreditando que já teria de enfrentar isso logo cedo.
Puta que pariu... aturar Fernanda, A amargurada, a essa hora da manhã não dá... Mas vou precisar encará-la de alguma forma. Respirei, abri a porta e sorri.
O tapa foi horrível de dolorido. A mão espalmada no meu rosto com certeza deixou marca. Ainda bem que a festa foi ontem senão não sei o que faria para disfarçar os cinco dedos na minha face alva. Haja base porque, a considerar pela dor, o estrago foi grande.
Fernanda virou a mão na minha cara e disse: — Precisava vir aqui fazer isso, só para começar a reorganizar minha vida.
Fiquei parada olhando para ela com a mão no rosto, mexendo o maxilar porque parecia que ele havia sido tirado do eixo. Eu já estava descabelada porque estava tendo o sono dos justos. Pelo visto ela não conseguiu dormir.
Que pena. Ela não vou conseguir mais pegar.

***

Saí de alma lavada.
Um pouco porque, na verdade, gostaria de matá-la. Incrível como existem pessoas que têm como único objetivo atrapalhar a vida do outro, por puro prazer. Depois de uma noite horrível pude enxergar que Laís atrapalhou bastante um possível reencontro meu com Clarice... O que mais será que ela e aquele almofadinha do Gustavo aprontaram?
Mas, pelo que me parece, Clarice e ela estão juntas. Será que Clarice sabe que Laís me conhece?
Neste exato momento não importa. Voltei para casa e encontrei Pedro tomando café para ir ao clube. Quando me viu passando pela porta assustou-se.
— Dormiu fora novamente? – perguntou depois de alguns instantes com um sorriso irônico no canto dos lábios.
— Não. Acordei cedo para começar a organizar minha vida. – respondi sentando-me diante dele. — A primeira coisa já resolvi, agora precisamos NOS resolver... – olhei-o decidida: — Pedro, quero o divórcio. Amanhã começo a procurar um outro lugar para ficar. Vamos resolver nossas vidas, não podemos mais viver nesse caos.
Ele ficou me observando durante alguns instante e depois levantou-se jogando o guardanapo sobre a mesa.
— Ok. Providencie os papéis.

***

Só consegui pegar no sono depois das seis da manhã.
Nana dormiu em casa e quando me levantei, às onze, ela já tinha preparado o café.
— Está mais calma? – perguntei sentando-me à mesa.
— Essa pergunta é minha. – respondeu enquanto passava geleia nas torradas.
— Ontem, além de tudo, quase morri do coração com você ao volante.
— Desculpa. Estava... estou mesmo furiosa com Laís. – pegou sua xícara de café, enquanto eu preparava a minha, e me encarou tensa: — Laís e Gustavo estavam manipulando vocês... Com certeza Fernanda não sabia que vocês se conheciam. E tem uma coisa que preciso te contar...
Parei de mastigar e a encarei na mesma intensidade. Parei de respirar também quando a vi corando.
— O quê, Nana?!!
Ela respirou fundo e:
— Vi Laís e Fernanda juntas num restaurante na quarta-feira à noite. Estava lá em reunião de trabalho. Não era só um jantar entre amigas, Clara... eu vi Laís beijando o canto da boca de Fernanda e cochichando ao seu ouvido... as duas trocaram carinhos...
Estava pasmada.
— Por que não me contou?!
— Porque tinha certeza de que nesta festa algo aconteceria e eu queria desmascarar essa vigarista, puta de merda, que nem consegue ser sacana sem deixar vestígios por todos os lados.
O café não desceu mais. Levantei-me da mesa e fiquei andando pela cozinha morrendo de raiva por ter sido feita de otária por Laís.
— Não acredito que ela fez isso!! Ela mentiu, me enganou... ela...
— Ela vai ter o que merece, Clarinha... te prometo.
— Vou lá, preciso dizer umas poucas e boas...
— Não. Você vai se preparar para encontrar Fernanda... deixa que cuido de Laís. Prepare-se até segunda-feira.
— Por que até segunda-feira?
— Confie em mim, querida.

continua...

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

CAPÍTULO 30 – ALUCINAÇÃO?

Pedro saiu cedo para a exposição, pois tinha que fazer as fotos que, amanhã, estamparão as páginas dos cadernos de cultura dos principais jornais do país. Não quis ir com ele. Mesmo tendo me esforçado, não conseguiria entrar com ele na festa de Laís.
Arrumei-me com capricho porque queria dar uma chance a mim, esquecer de uma vez por todas Clarice e, se acontecer, estar bem para Laís. Da última vez em que estivemos juntas, eu a senti enciumada quando contei que o telefonema era de Clarice, acho que cheguei a enxergar medo em seu olhar e sua indignação me fez pensar que talvez...
Bom, antes de mais nada preciso estar livre para qualquer envolvimento mais intenso. Quero conversar com Pedro mais uma vez, ele já teve tempo suficiente para amadurecer a ideia do divórcio. Eu não voltarei atrás.

Havia trânsito próximo ao local da exposição, um galpão abandonado que foi todo reformado para se tornar a galeria que abriga as obras dessa exposição. As obras de Laís são meio retrô, tudo a ver com o local escolhido. Essa festa gerou grandes expectativas na imprensa, portanto, claro que todos da área gostariam de estar aqui. Não sei se todos conseguiram, mas os carros estavam se amontoando diante do valet. Encostei o meu na fila e entreguei minha chave. Mas, mal entrei na festa e Gustavo veio em minha direção apressado, pegou-me pelo braço e olhou-me aflito.
— O que aconteceu Gustavo?
— Fê, você não vai acreditar! – estava visivelmente transtornado. — Esqueci uma das obras de Laís no apartamento dela.
— E o que posso fazer para ajudar?
— Por favor, vá até lá e traga-a. Não posso sair daqui, organizei tudo... preciso estar com Laís... e se ela souber que a obra que ela terminou no início da semana não está aqui, sou um homem morto.
O que eu poderia dizer?
— Ok. Vou até lá. – virei-me com pressa e fiz sinal para o manobrista me devolver a chave. Iria o mais rápido que conseguisse.
Quando virei-me para me despedir de Gustavo dei de cara com Nana. Jamais esperaria encontrá-la nesse evento.
— Nana?!
— Olá, Fernanda. – cumprimentou-me com um sorriso, mas não parecia muito espontânea, nem surpresa em me ver. Mesmo assim, olhou-me nos olhos, apertou minha mão e me deu um beijo. Eu, ao contrário dela, estava feliz por vê-la, gostaria de conversar mais com Nana, gostaria de tê-la como companhia naquela festa.
— Não sabia que conhecia, Laís...
— É... talvez conheçamos mais pessoas em comum... – disse-me séria, enigmática, mas não tive tempo de esticar a conversa, pois estava com pressa.
— Preciso fazer um favor para Gustavo. Volto logo. – e saí.

***

São Paulo, como sempre, congestionada. Era uma sexta-feira, nove horas da noite, zona Sul da cidade. Uma bagunça, um milhão de carros querendo encontrar bares, teatros, shoppings, casas noturnas, ou estacionar em alguma brecha da rua. Uma loucura chegar a qualquer lugar... Pensei em voltar, mas não podia deixar de fazer esse favor a Gustavo, e se é importante para Laís... afinal é sua última obra. Liguei o som e continuei na fila de carros, mudando vez ou outra a marcha: primeira, segunda, primeira, segunda. Detalhe: Laís mora na zona Norte.

***

— Conseguiu? – perguntei quando tive oportunidade, depois de muito tempo e cumprimentos, de me aproximar de Gustavo, que observava soberano o movimento no salão lotado.
— Eu disse que dava um jeito. – sorriu me olhando por cima. — Mas, não estranhe quando vir aquela sua estátua de pé quebrado...
Olhei-o interrogativa.
— O que está me dizendo?
— Que disse a ela que esqueci uma obra sua no apartamento e a única que me veio a cabeça foi aquela estátua de pé quebrado que você parou na metade.
Olhei-o fixamente para, em seguida, explodir numa gargalhada e ele também. Aquela obra estava horrível, totalmente fora do que eu pretendia... mas acabou me servindo para alguma coisa. Teria de escondê-la assim que chegasse.

***

Laís estava exuberante. Mais ainda posando para os flashes... Ela sempre adorou bajulações, elogios, tudo isso que alimenta seu ego, a deixa brilhando, feliz... e chama a atenção de todos, iluminando o ambiente.
Estava conversando com Júlio e Marcelo quando, vez ou outra, percebia que ela me procurava com os olhos e, quando eles me encontravam, sorria. Sentia que era importante minha presença ali, via que ela realmente estava feliz, e me sentia bem com isso. Na verdade, meus olhos também procuravam por ela. Acho que Laís vai me conquistar... pelo menos preciso que isso aconteça.
Enquanto ficávamos nesse jogo de olhares e sorrisos insinuantes, eu tentava encontrar Nana, que sumia a todo instante, como se conhecesse metade da festa.
— Nana, onde você se meteu dessa vez? – perguntei segurando-a pelo braço. — Arrumou um caso? – ela não sorriu, estava séria, não parecia estar se divertindo.
— Estava ali na entrada... – respondeu aérea, olhando ao redor.
— Fazendo o quê, criatura?! Aconteceu alguma coisa?
— Ainda não, mas acho que vai... – respondeu me olhando.
— Nana, fala comigo! Por que está assim, tão estranha?
— Tenha paciência, Clara.
E foi se afastando novamente. Muito estranho.

***

Não acredito que consegui chegar!
Levei simplesmente uma hora e quinze minutos para chegar até aqui. Se eu levar esse tempo para voltar, certamente a festa já terá terminado.
Subi até o apartamento de Laís, abri a porta e dei de cara com uma estátua estranha. Só pode ser esta. Estava dentro de uma embalagem de plástico. Olhei ao redor e não vi mais nada que pudesse me causar dúvidas de que era aquela obra que eu tinha que levar.
A volta foi mais tranquila até determinado ponto, mas os arredores do galpão estava muito congestionado e tive que esperar mais meia-hora até conseguir encostar o carro para o manobrista levá-lo. Conclusão, só às onze e dez estava de volta com a obra de Laís.
Peguei a embalagem e entrei no galpão. Imediatamente Gustavo veio até mim.
— Minha querida, muito obrigado! Você salvou minha vida! – segurou-me pela mão e começou a me puxar não sei para onde.
— Gustavo, vou buscar uma bebida e cumprimentar Laís... – tentei me desvencilhar dele para aproveitar a festa.
— Vou levá-la até ela já já, antes quero que você conheça...
— Fernanda?
Olhei por cima do ombro e vi Nana.
— Oi, Nana! – soltei-me de Gustavo e fui até ela.
— Vem comigo? – estendeu-me a mão séria.
— Mas ela vai ali comi... – tentou impedir Gustavo, mas Nana apertou minha mão e senti uma tensão no ar.
— Gustavo, eu a devolvo. Só quero conversar com ela um minuto.
— O que está acontecendo, Ana?
— Depois te explico.
E subimos até o mezanino. Desviamo-nos de uma multidão na escada e quando me vi no andar de cima havia ainda mais gente. Nana continuou a me puxar trombando com algumas pessoas. Atravessamos o espaço e saímos num local ao ar livre, como um terraço.
Vi Laís abraçada a uma mulher.
— Clarice! – chamou Nana.
Clarice?
Laís soltou a mulher e virou-se rapidamente.
A mulher que Laís abraçava era Clarice, que quando viu Nana segurando-me pelo braço paralisou-se apoiada numa bengala.
— Acho que vocês precisam conversar.

***

Quando a voz tensa de Nana me chamou, quase num grito, e me virei, tive que apoiar-me. Ver Fernanda ali, na minha frente...
Laís foi imediatamente cumprimentá-la com um abraço, mas Fernanda, estática, não tirou os olhos de mim. Os meus já estavam cheios de lágrimas e queria muito abraçá-la, sentir que ela estava ali, que era de verdade, mas Laís não parava de falar e as pessoas muito próximas de nós também falavam, falavam... estava ficando tonta com todo aquele barulho.
— Fê, que bom que você veio!
Em seguida Gustavo apareceu ofegante. Nana puxou Laís por uma mão e Gustavo pela outra, mas foi impedida de seguir caminho por um homem grande que se aproximou com uma câmera enorme pendurada no pescoço.
— Fernanda! Pensei que não viria...
Provavelmente era Pedro, marido dela.
Eu estava ali, imóvel quando ela assustou-se com a presença dele e sorriu sem graça.
— Tive um imprevisto.
Laís desvencilhou-se de Nana e veio até mim puxando a manga da camisa do homem grande.
— Clarinha, esse é Pedro, fotógrafo da exposição...
Tentei manter meu foco: Fernanda, mas Laís fez questão de estar entre nós duas, tumultuando, de modo que eu não tinha outra alternativa que não fosse olhar para aquele homem e disfarçar meu tormento: — Prazer. – sorri forçadamente enquanto ele estirava a mão para apertar a minha.
Quando meus olhos se desviaram apressadamente dos dele para voltar aos de Fernanda não a vi mais.

***

— Gustavo, o que você quer comigo? Por que não me deixa em paz? – perguntei descontrolada, enquanto ele me levava escada abaixo.
— Eu só queria te poupar...
Parei no meio da escada e o encarei... começando a entender algumas coisas.
— Me poupar do quê? – perguntei furiosa, a fim de esmurrá-lo também.
— De saber que Laís e Clarice estão juntas. – ele me disse calmo, friamente, analisando minha reação. Filho da ...
— Vocês sabiam... VOCÊS SABIAM O TEMPO TODO!!! – só me dei conta do que tinha feito quando ouvi a palma da minha mão estalar no rosto de Gustavo. Meu sangue subiu com tanta força que perdi completamente a compostura e parti para cima com todo meu ódio. Eu mataria aquele desgraçado e depois enfiaria a mão naquela vaca da Laís! Mas alguém me segurou pela cintura e me levou dali.
Era Júlio que me afastava enquanto Marcelo puxava Gustavo para o outro extremo.
— Preciso ir embora daqui. – disse tonta, enjoada por estar ali.
— Levo você.

***

Laís falava olhando para mim, mas eu não entendia.
Estava transtornada. Tive Fernanda na minha frente e não consegui dizer absolutamente nada. Laís olhava-me enquanto falava e gesticulava para outras pessoas que se juntavam ao nosso redor, senti seus dedos roçando minhas costas e ela gargalhava com alguém próximo. Eu estava com dor de cabeça, sentindo-me sufocada, precisava ir embora. Saí dali, do meio da roda, e Laís me segurou.
— Aonde vai, meu amor?!
Antes que eu respondesse Nana apareceu para me salvar. Passou seu braço sobre meu ombro.
— Laís, vá cuidar da sua festa. – e tirou-me daquele tiroteio de palavras, risadas e música alta.
— Nana, por favor, me tira daqui.

continua...

sábado, 11 de setembro de 2010

CAPÍTULO 29 – CONTAGEM REGRESSIVA

— Por que você não atende a merda do celular?
— Estava correndo feito louco atrás dos detalhes da festa de lançamento da sua exposição, portanto, abaixa a bola.
— Querido, não se faça de vítima porque todo esse circo traz muito dinheiro para você também.
— Bom, estou aqui, minha ama. O que deseja?
— Estou com problemas em administrar Clarice e Fernanda.
Quando mencionei o motivo de minha intimação, Gustavo baixou a guarda. Sorriu sarcasticamente, folgou a gravata e relaxou.
— Se metendo em confusão de novo com suas mulheres...
— É... mas antes era só brincadeirinha. – respondi descalçando os sapatos e caminhando em direção à varanda para ver a vista do sol se pondo. Gustavo veio atrás de mim já segurando um copo de uísque.
— E não é brincadeira agora?!
— Eu queria, de fato, ter um relacionamento com Clarice... mas manteria um caso com Fernanda, sem problema nenhum porque Fernanda está com fome, sabe? – ele sorriu malicioso e eu acendi um cigarro. — Mas ainda rola uma coisa forte entre as duas... Elas vão se falar, elas já se descobriram... – agora estava mais pensando alto do que conversando com Gustavo.
— Como assim se descobriram? – perguntou curioso.
— Clarice já sabe que conheço Fernanda, descobriu pelo facebook... um vacilo estúpido e imperdoável meu. Com certeza vai procurar por ela, mas acho que vai na defensiva porque tratei de desmoralizar a burguesinha e dizer que ela também não foi ao tal encontro romântico... disse que Fernanda me confidenciou que o caso que tiveram foi só uma diversão...
— Você é mesmo perigosa... Mas, e se, quando se falarem, Fernanda contar que foi?
— É um risco. Mas tentei persuadir Fernanda... Ela é bem mais fácil de manipular. – traguei com força o cigarro... precisava relaxar.
— Minha questão agora é outra: o lançamento de sexta-feira.
— O que é que tem?
— As duas são minhas amigas, Gustavo! As duas estarão lá!
— Mas Clarice sabe que você conhece Fernanda...
— Mas Fernanda não sabe que conheço Clarice... – saí da varanda nervosa porque, aos poucos, convencia-me de que estava me enrolando demais. Sempre gostei de brincar de gato e rato, mas as mulheres em questão não se conheciam, era muito mais fácil... agora vacilei e tenho que tentar consertar isso afastando-as o máximo que conseguir.
— Posso cuidar de Fernanda. – disse Gustavo lá de fora, sem se virar, observando a cidade escurecendo do alto.
Isso me animou. Gustavo, vez ou outra, tem algumas ideias.
— Como?
— Deixa comigo.

***

Dormi feito uma pedra depois de duas noites em claro. Não há organismo que resista à tanta expectativa que, em seguida, é mergulhada em água fria... congelada. Estava com o corpo todo dolorido depois de umas doze horas de sono profundo. Quando acordei não quis levantar e, então, dormi novamente. Na noite de quinta-feira tive que, finalmente, levantar para atender Nana, que tocou a campainha irritantemente até que eu tivesse vontade de matá-la e, para isso, teria de ir até a porta.
— Cara, o que aconteceu? Estou tentando falar com você desde ontem à noite! – entrou porta adentro bronqueando, olhando ao redor. — O que aconteceu por aqui, Clara? – perguntou surpresa, com voz forçadamente serena, após ver cacos de vidro espalhados por parte da sala e suco esparramado pelo chão.
— Surtei. – respondi simplesmente virando-lhe as costas e voltando para a cama. Claro que ela veio atrás, sentou-se ao meu lado... tirou os fios de cabelo que caíam sobre meu rosto enterrado no travesseiro.
— Me conta tudo desde terça-feira à noite, quando te deixei com uma bomba nas mãos.
Fiquei um tempo em silêncio, precisava recapitular os últimos acontecimentos porque tinha a sensação de ter dormido anos... melhor se fosse assim, e acordasse quando tudo tivesse passado, inclusive dentro de mim. Sem pressa ela esperou, tirou os tênis e juntou-se a mim na cama. Que bom que eu tinha Ana Paula para compartilhar minha vida, alegrias e tristezas. Precisaria mesmo de alguém como ela para me ajudar a carregar a infelicidade. Deus! Estou com muita dó de mim, que péssimo!
Respirei e contei tudo. Desde o momento em que descobri que Laís conhecia Fernanda até o telefonema ontem à noite. Nana escutou-me sem interrupções, mas fazia expressões críticas durante meu relato, refletindo, observando minhas reações.
Chorei novamente, dolorida, e declarei, tendo minha amiga como testemunha, que não ligaria mais para Fernanda, pois comprovei que ela tem uma vida, que seguiu adiante e que me tratou como uma estranha. Não a reconhecia, não era a mulher por quem eu tinha me encantado naquele avião, e teria de encontrar novos motivos que me motivassem novamente para qualquer coisa.
— Que coincidência Laís conhecê-la... – pensou um pouco roendo a unha. — Será que ela não sabia que você e Fernanda...
— Antes de eu contar? Muito pouco provável... Ela me disse que é amiga do marido dela. – lembrei-me do que Laís me contou sobre Fernanda e me senti ainda mais amarga. — Laís me contou que Fernanda teve um caso com um amigo do marido... então achou melhor cortar relações...
— Laís disse isso?!! – Nana franziu o cenho desconfiada. — Desde quando Laís tem esses pudores? Sabemos que a própria já fez coisas muito piores... – levantou-se, calçou novamente os tênis e ficou caminhando pelo quarto. — Laís está muito a fim de você... e se ela estiver inventando...
— Pensei nisso, mas Fernanda confirmou que não foi ao encontro.
— Fernanda não me passa a imagem de uma leviana... – comentou Nana ainda pensativa.
— As aparências enganam...

***

Na quinta-feira, acordei atrasada ainda vestida, atravessada na cama, do jeito que caí na noite anterior. Esqueci de colocar o despertador, fiquei atordoada demais para pensar em alguma coisa, estava, ontem à noite, dominada por um misto de raiva e tristeza: raiva por ela ter me ligado depois de tanto tempo e tristeza por perceber que realmente não tínhamos mais nada a ver uma com a outra. Agora, acordava com uma ressaca na alma.
A sensação era de derrota... mais uma.
Depois de retomar a noção de mim mesma, percorri os cômodos e cheguei à conclusão de que Pedro não havia dormido em casa. Minha vida estava mesmo um caos. Não tinha ânimo de ligar para ele, mas era minha obrigação... poderia ter acontecido alguma coisa. Espero que não, espero que ele tenha tido a noite que tive quando dormi em outro lugar.
Amanhã será o lançamento da exposição de Laís e terei de estar impecável ao lado dele, meu marido, ainda. A artista da exposição? É meu caso atual. Essa é minha vida... e não estou feliz com ela.
***

Sexta-feira.
Finalmente.
Depois de estar entre as mostras dos melhores contemporâneos, das maiores revelações da década, agora sou eu, sozinha, A melhor, A revelação. Um espaço inteiro para minhas obras, para os textos de Clarice apresentando-as.
Finalmente eu tenho tudo. Eu conquistei tudo.
Tirei o dia de noiva. É cansativo mas fui para o spa ficar lá mergulhada em lama, banhos, maquiagem, precisava estar deslumbrante hoje, especialmente hoje, porque a noite é minha. Gustavo foi me buscar e, no apartamento, meu vestido e uma garrafa de prosseco me esperavam.
— Você está linda, querida. Hoje a noite é sua! Divirta-se.
Brindamos e viramos a taça num único gole para esquentar a noite.
— Vou me divertir muito, afinal... há algo mais importante do que isso na vida?
— Claro que não... a vida é SÓ diversão.
Sem a menor pressa me vesti, tomei mais prosseco, olhei-me no espelho e realmente me senti bonita. Não consigo entender porque Clarice não esquece logo a burguesia e fica comigo. Seríamos uma dupla e tanto.
Gustavo estava atrás me olhando pelo espelho, encostado no batente da porta admirando eu me admirar. Ele estava elegante, charmoso... Provavelmente sua carreira também dará um “up” depois dessa exposição. Somos imbatíveis e sei que hoje, mais uma vez, poderei contar com ele.

O galpão estava muito bem decorado, um ótimo gosto, tudo chique, sem afetação. Gustavo cuidou muito bem de tudo. Andei pelo ambiente e cumprimentei os primeiros convidados. A luz fraca, o burburinho das conversas, a bebida, o sorriso das pessoas bonitas deixavam o ambiente intimista, aconchegante, sensual como minhas obras. Passei a ler os textos de apresentação que Clara escreveu para cada conjunto de obras. Ela entendeu tudo, Clarice sabia o que eu sentia e pensava ao produzir cada peça. Perfeito.
Pedro já estava no mezanino fotografando as obras sob a luminosidade que eu queria, meia-luz ou luz de velas. Quando se aproximou para me cumprimentar, vários pensamentos vieram à minha cabeça, inclusive o de que eu estava me deliciando com sua mulher... Sempre achei Pedro lerdinho, nunca enxergou o que está diante do seu nariz.
— Laís, a exposição está linda! Parabéns.
— Tenho certeza de que suas fotos vão deixá-la ainda mais especial. – respondi sorrindo enquanto o abraçava e olhava para Gustavo com cara de tédio.
— E Fernanda, não veio com você? – perguntei oferecendo-lhe uma taça de champanhe que passava por nós sobre a bandeja do garçom.
— Vem um pouco mais tarde. – respondeu com um sorriso triste. Por que será? Será porque sua esposa está comendo fora de casa?!! Não estava com paciência para consolar ninguém... só queria me divertir e, se tiver sorte, beijar Clarice e a mulher dele.
Conversamos algumas amenidades para que eu pudesse observar ao redor sem deixar de estar acompanhada, mas, quando vi Clarice, deixei de ouvir o que Pedro estava me dizendo para vislumbrar aquela mulher tão delicada mas que, ao mesmo tempo, me transmitia uma personalidade, um estilo tão fortes que me intimidavam, que faziam com que eu a respeitasse e a achasse irresistivelmente atraente. Clarice não era o tipo mulherão, era pequena, mas seus gestos, seu modo de olhar me excitavam... estava enfeitiçada. Usava um vestido lindo, listrado de cores vivas, estava com um novo corte de cabelo, os brincos e o colar davam a ela o toque de sofisticação. A bengala deixaria qualquer outra mulher brochante, mas para Clarice tornou-se um amuleto, um charme.
Deixei Pedro falando sozinho e fui em sua direção, encantada pela atenção que ela me dispensava, apaixonada pelo sorriso largo, com olhos brilhantes. Aproximei-me tentando hipnotizá-la também, a fim de que ela me quisesse como a quero. Abracei-a com cuidado, acariciei suas costas, beijei seu rosto demoradamente e acho que seu corpo correspondeu aos meus estímulos porque o senti tenso. Adorei isso.
— Suas apresentações ficaram maravilhosas... – cochichei em seu ouvido e, depois, olhando-a nos olhos: — Preciso retribuir a gentileza. – Clarice correspondeu com um olhar malicioso, observou-me de cima a baixo e me arrepiei, e percebi que ela queria o mesmo que eu.
Não tinha notado Nana ao seu lado. Ela ousou quebrar a mágica daquele instante entrando em nossa frente e abraçando-me para os cumprimentos. Só então me dei conta de que, afinal de contas, eu tinha que dar atenção para as outras pessoas.
Pedi à Clarice que não fosse embora sem falar comigo, queria muito combinar algo com ela ainda naquela noite tão especial para mim. Não vou perdê-la de vista.

Estava dando uma entrevista quando avistei Fernanda chegando... de parar o trânsito. O que faço com essas mulheres?! Mas, imediatamente busquei Clarice com os olhos e não a encontrei próxima. O que vi foi Gustavo, com expressão de assustado abordando Fernanda e dizendo algo em seu ouvido. Em seguida, vi Fernanda fazer sinal para que o manobrista não guardasse o carro. Mas também vi Nana se aproximar e as duas conversarem. Não sabia que se conheciam... Depois de alguns segundos de conversa Fernanda entrou em seu carro e saiu.
Gustavo me procurou com os olhos e, quando me encontrou, sorriu discretamente.

continua...

sábado, 4 de setembro de 2010

CAPÍTULO 28 – COMO ESTRANHAS

Não conseguia prestar atenção em absolutamente nada do que minha mãe dizia. Mais de uma vez ela chamou por mim e perguntou se eu estava no mundo da Lua. Não, mamãe, eu estava ligando, depois de três anos, para Fernanda e precisava mesmo estar sozinha porque você não iria entender nada... porque ninguém tem noção do que passei e como estou (bom, acho que Nana tem). Minha mãe interrompeu um “processo” tenso e a sequela foi o desencadeamento de um estresse imenso, e de um medo também, porque não sabia se seria capaz de ligar novamente, agora que sei que meu número está gravado no celular dela.
Penso que, se meu número está gravado lá, e se ela o reconheceu, cabe a ela dar o segundo passo. Na verdade, não cabe nada porque a situação é delicada. Primeiro: ela pode simplesmente ignorar a ligação por simplesmente não saber de quem é o número, afinal, quais as chances de alguém se lembrar de um número que não vê há três anos? Segundo: ela pode estar me achando uma verdadeira idiota por ter desaparecido por tanto tempo e ter dado as caras só agora, e mais, nem ter sido capaz de dizer um “oi”.
Patética a situação.
Quando a campainha tocou, derrubei o celular (ainda bem que não quebrou). Quando abri a porta e vi mamãe, minha expressão de decepção a decepcionou e fiquei tentando reverter o mau jeito, sem sucesso, pois ela falava comigo e eu não escutava.
Argumentei que estava cansada, desacostumada com as aulas, com os planejamentos de aulas, enfim... bilhões de desculpas. Ela disse que me perdoava e começou a me mostrar roupas que comprou para mim na viagem que fez a Nova York. Meus gestos foram mecânicos e meu coração saltava toda vez que o celular tocava. Nana, Marcelo e Luana me ligaram e sentia-me exausta de tanta tensão.
Achei que ela não fosse embora nunca mais, achei que a qualquer momento diria: “Querida, já que está cansada, vou ficar aqui alguns dias cozinhando e arrumando as coisas para você”. Teria um enfarto a qualquer momento se ela não saísse porta afora. Reconheço tudo o que mamãe fez por mim e a amo enlouquecidamente, mas preciso estar só para pensar no que fazer.

Agora tomo um banho demorado, retardando minhas próximas ações porque todas elas estão envoltas ao questionamento: voltar a ligar para Fernanda ou esperar que ela me ligue?
Quando liguei tinha um texto na mente: dizer que depois de muito tempo encontrei seu cartão e me vieram lembranças boas do dia que passamos juntas.
Não pretendo confundi-la, nem estragar seu casamento... na verdade, acho que não faria isso de modo algum, já que sei que ela não foi ao encontro, ou seja, o que passamos não significou muito para ela. Estava magoada, mas a vontade de ouvir sua voz era maior. Ter seu número de telefone novamente, depois de tanta espera, e não fazer nada seria um desperdício, seria covardia não ouvir o que ela tem a me dizer... ou não.
Peguei o celular várias vezes e desisti de ligar no último algarismo. Meu coração estava alucinado. Coitado. Mais uma noite sem dormir...
Estava na cozinha preparando um lanche quando o aparelho tocou novamente na sala. Tentei alcançá-lo o mais rápido que consegui.

Era ela.

Tentei me acalmar um pouco. Deixei que o celular tocasse e isso não era parte de nenhuma estratégia, era medo.
— Alô.
Silêncio do outro lado. Tentei novamente:
— Alô...
Não me responde, mas só pode ser ela.
— Fernanda? Fui eu, Clarice, quem ligou mais cedo..., ... lembra-se de mim? – perguntei com cautela para não afastá-la.
— Clarice... não pensei que você ligaria...
As frases iam ficando pela metade. Tentava conter minha emoção em ouvi-la e quase não consigo porque um nó forte se formava em minha garganta e minha voz falhava. Fernanda também parecia surpresa, parecia que também não sabia bem o que dizer... sua voz não me passava a segurança de antes.
— Pois é... – sorri. — Muitas coisas aconteceram desde aquela viagem.
— Sim... muitas coisas...
— ...
— ...
— Desculpa ligar, talvez tenha sido um impulso inconsequente... talvez eu não devesse ligar...
— Achei estranho... depois de tanto tempo...
Estávamos totalmente embaraçadas. Aquele texto que ensaiei falar não saía. Não tinha coragem de dizer que encontrei seu cartão por acaso porque não era verdade, mas também não posso dizer que o estava procurando há três anos sem que, para isso, tenha que dizer o motivo. Não quero dizer (até porque ela também não foi), não quero atrapalhar o que ela construiu, não quero que tenha pena de mim.
Resolvi mudar de assunto, apenas saber como ela estava, apesar de querer saber muito mais.
— Como você está, Fernanda?
— ...
— Fernanda?
— Estou bem, Clarice... trabalhando bastante...
Tentei arriscar:
— Desculpa não ter ido ao encontro...
— ...
— ... eu deveria ter avisado... mas...
— Não se preocupe, Clarice, também não fui.
Como doeu ouvir isso.
— Não?
— Não. Então... acho que estamos quites.
— Sim. Pensei que tivesse te magoado, mas acho que me sinto mais aliviada sabendo que você também não foi...
— Por isso está ligando hoje?
Não tive como não rir.
— Bom... não sei ao certo... acho que queria ouvir sua voz...
— Então você não sabe por que ligou?
Senti uma certa irritação em sua voz.
— Liguei porque senti saudades.
Não resisti. Não estava mais conseguindo me segurar.
Ela riu do outro lado da linha. A sensação que eu tinha era de vazio, de que tudo tinha perdido o sentido. Ela também não foi ao encontro, então, o que estávamos fazendo? Que besteira eu ter ligado para ela!
Ficamos em silêncio por algum tempo e, já que tinha feito a besteira, achei por bem fechá-la com chave de ouro:
— Fernanda, por que você não foi ao encontro? – perguntei à queima roupa. Ela manteve o silêncio por um instante infinito e me respondeu seca, com a voz segura da empresária de sucesso:
— Provavelmente pelo mesmo motivo que você.
As lágrimas saltaram dos meus olhos. Só tinha que controlar meu tom de voz para que ela não percebesse que estava chorando.
— Ok. Só queria saber... – parei por um momento para respirar e encerrar aquela conversa surreal. — Eu queria apenas retomar o contato. Foi ótimo falar com você... Desculpa se te incomodei.
— Não me incomodou. Foi bom ouvi-la.
— Certo. Então, até mais.
— Até.
Desligou.
Toda a tensão absurda que sinto nos dois últimos dias tomou a proporção de dor por todo meu corpo... e toda minha alma. Chorei com força, com raiva, com toda tristeza que há em mim. Joguei o copo com suco na parede da sala e caí sobre o tapete a fim de morrer, de ficar imóvel novamente porque a dor era a mesma que senti naquela cama de hospital. Queria dormir e acordar somente quando essa dor, exaustão imensa, tivesse passado.
Deixei que as lágrimas caíssem, lavassem meu rosto. Preciso tirar Fernanda de mim de uma vez por todas.

***

Corri para o quarto. Pedro não estava.
Peguei o celular da bolsa decidida a ligar. Tinha que aproveitar meu acesso de coragem... Mas não seria boba. Vou apenas saber o que Clarice quer comigo... Mentira. Na verdade quero ouvi-la, saber se continua com aquele tom alegre, divertido na voz... quero aquecer meu coração. Porém, não posso deixar a emoção me dominar... totalmente. Clarice foi sacana comigo... me deixou esperando em um aeroporto do outro lado do mundo e, nem ao menos, me ligou para dizer que não estava a fim de aparecer ou inventar qualquer desculpa esfarrapada. Agora essa ligação não completada... ridículo.
Lavei o rosto, apertei minhas mãos como se isso fosse suficiente para impedir que elas parassem de tremer. Só não sei o que fazer para que meu coração desacelere. Respirei fundo e digitei os números.
Minha voz sumiu ao ouvir a dela me chamando. Deus! Que saudade. Tive que respirar mais fundo e tapar minha boca para que ela não percebesse a explosão do choro. Impossível não perder o controle depois de ouvi-la tão doce. Era um fio de voz... não senti a alegria, mas acho que ela estava tensa, talvez tenha se arrependido de ter ligado... mas era tarde.
Pensei em desligar, não achei que fosse conseguir dizer algo sem que ela reparasse na minha voz trêmula e chorosa. Mas consegui manter contato à medida que percebia que ela também estava embaraçada.
Perguntou se eu me lembrava dela... Chega a ser engraçado. Realmente ela não tem noção do que causa em mim. Da mesma maneira, não faz ideia de como despertou minha raiva quando perguntou sem rodeios por que não fui ao encontro. O que ela queria que eu respondesse? De verdade eu me sentiria uma idiota se dissesse que fiquei lá uma eternidade esperando por ela. Tenho que, pelo menos, tentar manter a cabeça erguida.
No fim de uma conversa sem muito nexo, mas surpreendente, sentei-me na cama para recaptular cada fala e tentar encontrar nelas algum sinal, de alguma coisa, que me fizesse crer que ainda temos uma chance.

continua...