sábado, 18 de julho de 2009

Crônicas, contos e viagens

Olá, pessoas!! Tudo bem?!!
Estou postando aqui também as crônicas, contos, viagens que posto lá no Livre Arbítrio.
Assim eu alimento o blog que, às vezes, fica tão abandonado. (mas leio todos os comentários, ok?!!).
Logo abaixo há todas os textos que venho publicando lá.
E... logo acima, daqui a pouco, postarei um resumo do que contei na Off FLIP, que foi maravilhosa nos dando a oportunidade de marcar presença da Literatura Lésbica na Festa Literária Internacional de Parati.

Foi só a 1ª Conversa de Literatura Lésbica de Parati. Tenho certeza de que ano que vem bombará novamente.

É isso, meninas. Sei que o Twitter faz muito mais sucesso que os blogs (que ficaram ultrapassados), mas aqui ainda é divertido... e escreve-se mais... Bom, espero que continuem vindo até aqui. É sempre um prazer.

Até maissss!!! Beijos.
E obrigada sempre.
Mari Cortez.
Linda Rosa

Carol estava de canto, observando encantada a aposta de provável revelação da nova MPB. Talentosíssima a pequena de calça xadrez, tênis e camiseta com uns rabiscos estranhos. Era meio desengonçada, não parecia muito à vontade em cima do palco sem estar cantando... Voz forte, intensa, cheia de paixão ou dor ou ódio, dependendo da ocasião e letra.
Bonita, sorridente a tal cantora... Poderia ser marketing – simpática nos seis primeiros meses e antipática no restante da carreira –, mas parecia timidez, o sorriso talvez fosse a defesa que dá charme aos artistas que repudiam o assédio excessivo. Mesmo se defendendo era sedutora... seu olhar, seu tipo não-tô-nem-aí, sua voz calma e pausada, sua canção, sua emoção. Carol observava fora da órbita terrestre enquanto a amiga, bem mais atirada, trocava palavras atropeladas com a tal revelação assim que o show, para uma dúzia de pessoas, terminou.
— Carol, vem aqui conhecê-la... – chamou a amiga com um gesto apressado de mão, como se a tal de camiseta rabiscada fosse um bicho exótico. Carol sentiu-se cair na real e estremeceu ao perceber o momento de aproximar-se dela.
Saiu do seu canto trôpega dirigindo-se lentamente a ela, que a encarou com olhos grandes e meio-sorriso envaidecido, daqueles que não querem mostrar o quanto.
— Ela é super sua fã, já sabe todas as músicas. – entregou Carol de bandeja, ardida por dentro e desnudada diante daquela pessoa que se vestia de artista e se transformava numa deusa, num ser ideal, mesmo que em trajes humanos... Carol não entendia o porquê do encanto, talvez fosse por causa de sua voz de veludo, talvez por ser tímida e, mesmo assim, expor-se, contando com a possibilidade de transformar aquele público de uma dúzia de pessoas de hoje em centenas, milhares delas amanhã.
— Obrigada. É maravilhoso saber que alguém sabe minhas músicas... pensei que só eu soubesse cantá-las... – sorriu apertando forte a mão da abobada fã e roçando levemente seu rosto no de Carol, na representação de um breve beijo. Carol arrepiou-se e todos seus pensamentos minimamente dizíveis evaporaram com o nervosismo e com a busca por algo inteligente para dizer. Qualquer coisa que dissesse naquele exato momento soaria como a vontade de tê-la só para si, para que cantasse exclusivamente em seu ouvido... Respirou fundo e tentou conter a força do deslumbramento. Tomou coragem para olhá-la cuidadosamente e percebeu que traços mínimos e particulares de seu rosto jamais seriam vistos pela tela de uma TV ou à distância de um palco. Queria aproveitar aquela chance de desvendá-los ao máximo.
— Minha preferida é Linda Rosa. – disse finalmente sorrindo como pode, após ouvir com horror o som de sua voz trêmula.
— É uma das minhas preferidas...
Quando sentiu-se apta a continuar, uma louca surgiu com o celular suspenso por uma das mãos, solicitando a atenção total da estrela para uma declaração no jornal que sairia amanhã: “Eles querem saber qual sua cor preferida e por quê”. Arrastou a cantora para fora dali... e Carol quase despencou-se. Quando a adrenalina chega ao topo da emoção e despenca, é preciso segurar-se forte, pois o chão foge dos pés (quem precisa de montanha russa?).

Carol saboreou aquele momento de diversos ângulos. Aguçava o olhar da memória para se lembrar detalhadamente do rosto, das covinhas que se formavam quando pretendia sorrir, do olhar que talvez (só talvez) dizia coisas que sua timidez não permitia que dissesse por meio de palavras sem música.
Buscava a cantora pelos sites, blogs, google, rastreava seus passos e tornava-se íntima sem que ela soubesse. “Todos os fãs tornam-se ‘íntimos’ de seus ídolos, e eles nem imaginam...”. Onde foi que a ouviu pela primeira vez mesmo? Alguém indicou, disse que era a voz de uma sereia... Carol foi atrás, pesquisou, baixou músicas, comprou o CD, decorou o encarte, cantarolou todas as faixas grudadas em sua mente, aquelas letras diziam tantas coisas... “como alguém pode cantar tão bem o que sinto?!”.
Depois de criar o ideal, entristecia e achava-se uma adolescente tola, apaixonada por uma pop star teen, capaz de colar pôsteres na parede do quarto em frente à cama e elaborar fantasias antes de dormir... “Ela nem se lembra de mim...”.
Acompanhando a agenda alternativa da cantora, descobriu que, no mês de suas férias universitárias, ela cantaria na Off Flip (Festa Literária Internacional de Parati, para os menos “visados” pela grande mídia). Enfiou apressadamente coisas na mochila, pegou o ônibus do Rio à cidade histórica. Simplesmente foi, sem pensar nos pormenores que uma viagem exige: esqueceu os óculos, o pijama, a escova de dente, o colírio, o fone de ouvido, uma troca a mais de roupa... Não importava, estava feliz com a oportunidade de vê-la novamente, de saber que aquelas covinhas no rosto que ela tem não seriam vistas pela maioria das pessoas que estivesse lá, mas Carol sabia que elas existiam quando ela ameaçava sorrir. Se sua amiga atirada soubesse o tamanho de seu deslumbramento... mas há sentimentos que precisam estar guardados bem dentro, divulgá-los é transformá-los em algo comum e, assim, frágil, e o que Carol sentia era forte demais... o tesão, a fantasia... queria curtir com ela mesma, ou dividir tudo isso com a culpada, se ela quisesse, se ela a notasse naquele bar apertado com poucos fãs e muitos boêmios que queriam apenas comer e beber ouvindo um som ao vivo.

A provável empresária estava lá com o celular suspenso: “Fala aqui com a revista...”, algumas garotas tão atiradas quanto sua amiga, que ficou no Rio, furavam o cerco e derramavam sorrisinhos mal intencionados para a bela cantora, que sorria defendendo-se de tanto assédio e agradecia. “Ela diz pra todas o que disse pra mim”, pensava a enciumada Carol tomando sua cerveja sozinha, sentada numa das mesas.
A artista cantou seu canto encantador e Carol esqueceu o ciúme para cantar junto baixinho. Todos os presentes, aos poucos, suspenderam o burburinho e deixaram-se enfeitiçar pela voz, letra e melodia: “agora tanta gente sabe quem você é...”. Todos boquiabertos e calmos, como se estivessem hipnotizados pela leveza do som e pela beleza da pessoa sentada sobre o banquinho que emitia aquele som.
Cantou a última antes do bis.
Sorriu vitoriosa. Já não era o sorriso tão tímido e, percebendo isso, Carol sentiu que precisava agir antes que a cantora descambasse para o mundo dos inacessíveis. A adrenalina subiu e: “Canta Linda Rosaaaa!!!”. Sua voz ecoou e a cantora encontrou seu olhar. Começou a dedilhar o violão enquanto as pessoas do bar a aplaudiam, menos Carol, que oferecia seus olhos cheios de lágrimas.
Era a música de sua vida.
Cantou junto como se fosse sua declaração de amor. Estava feliz por ter feito um pedido... e ter sido atendida.

Fim de show.
Pessoas se amontoando ao redor da cantora que, há uma hora, era apenas a provável animadora de um bar da Off Flip. Revelação. A cantora era mesmo um sucesso.
Carol levantou-se, desviou-se de toda aquela gente e dirigiu-se ao caixa para pagar sua bebida. Não tinha mais o que fazer ali. SUA cantora estava rodeada por pessoas que mal a conheciam: “Eu a conheço... desde o começo”.
Estava na porta de saída quando um dos garçons, correndo, aproximou-se dela.
— Pediu pra te entregar e pra você esperar um pouco ali perto do bar.
Era uma rosa vermelha.
Voltou-se para a multidão e, naquele momento, foi Carol quem encontrou o olhar dela.
Pegou a flor, cherou-a com olhos fechados e seguiu o garçom de volta ao bar. Ficou esperando aquela roda de fãs se dissipar com um meio-sorriso nos lábios...


Mariana Cortez
15- 07-2009
Depois do sexto minuto...

Eu era da turma há anos, mas, como ela era grande, tinha afinidades com uns e menos com outros. Saía sempre com a Fabi, a Luana, o Julio e a Mariana.
A Mariana..., ..., ...
Pois é... a Mariana... Eu era apaixonada por ela. Uma paixão platônica, totalmente. Éramos amigas. Não as melhores porque não sou tão cruel comigo mesma, mas o suficiente para estar por perto.
Ela namorava a Fabi, muito gente boa... A Fabi eu conheço desde adolescente, estudamos no mesmo colégio e eu a adoro. Supergentil, engraçada... é atriz de teatro. Tem todo o jeito pra isso. Tem um jeito de olhar, um sorriso de personagem de novela, mas é simplesmente Fabi e seu carisma.
Seu jeito combinava com o da Mari, que é superatenciosa, superbem-humorada, superamiga de todos... superlinda. Eu a conheci numa balada, a Fabi a apresentou: “Essa é a Mari de quem tanto falei.” Estavam as duas lindas de mãos dadas, tão felizes que os olhos faiscavam amor. Os meus também faiscaram, mas foi depois do sexto minuto de conversa. Que amor era ela! Que bem articulada, que sorriso constante, que olhos que encaravam com desprendimento, que gestos largos que complementavam sua fala que vinha de maneira tão intensa, e viva. Linda!
Ela se deu bem com todo mundo e todos se “apaixonaram” por Mariana, mas acho (e apenas acho) que ninguém se apaixonou como eu, com a vontade de querê-la por perto constantemente, pra tocá-la, tê-la pra mim... Mas ela era namorada da minha amiga: “Namorada de amiga minha é homem...”
Péssimo, eu sei, mas tinha de ser assim.
Então, colocava-me no meu lugar de observadora minuciosa, que se precavia pra não carregar a paixão tão explícita nos olhos; não estragaria a amizade que tínhamos, curtiria o tempo que fosse necessário aquele sentimento terno até que eu pudesse transferi-lo para um amor concreto.
Às vezes ela me chamava: “Sofia!”
Adorava. Não dava na pinta, óbvio, fingia que qualquer uma me chamava, mas meu coração sorria toda vez que sua voz se dirigia a minha adrenalizada pessoa.
Uma conversa que nunca esqueci:
— Sofia, você sabe o que significa seu nome?
— Dizem que significa sabedoria.
— É, já ouvi dizer, mas prefiro o outro significado...
— Qual?
— Que Sofia é o lado feminino de Deus.
Não me lembro se comentei alguma coisa... só me lembro de uma leve vertigem em decorrência da fala que instigou as borboletas que borboleteavam em meu estômago. Naquele momento, meus olhos vazaram paixão (contida na lágrima que escapou, mas ela não viu) e eu saí de mim. Só consigo me lembrar dela dizendo isso com imensa calma quando estávamos sentadas na areia com o pessoal, à noite, ao redor de uma fogueira. A maioria cantava e bebia, e nós conversávamos, e eu viajava... e me apaixonava... Ela não tinha a mínima noção do quanto era especial pra mim.
Anos depois daquela conversa, a galera alvoroçou no MSN, orkut, nos e-mails. A fofoca era: “Fabi e Mariana não estão mais juntas.” Li várias “discussões” a respeito, mas não me meti e não soube o que senti ao saber daquilo. Elas eram tão boas juntas, nunca as vi brigar, nunca presenciei um mísero mal-estar entre elas... Foi um choque saber que até um casal assim se separava um dia.
Depois de lê-las como manchete de fofoca barata, encontrei Fabi no teatro. Ainda estava se sentindo estranha, disse que ainda não sabia muito bem o que fazer com os momentos do seu dia que, antes, continham Mari. Explicou-me que o encantamento havia passado, que os olhos não brilhavam mais quando se olhavam, mas ainda existia muito carinho e amizade.
No dia seguinte encontrei a outra versão no supermercado: “A Fabi sempre vai fazer parte da minha vida, só que, agora, de outra maneira...” Mariana até reagiu bem quando soube que a ex estava saindo com a nova colega da companhia de teatro.
Soubemos que a cia. lançaria uma nova peça e fomos todos convidados para a festa na casa do tal diretor.
Em meio à música, a bebidas e muitas pessoas, encontrei Mari numa roda de amigos, peguei uma cerveja e sentei-me de frente pra ela. Ela sorriu levantando o copo pra me cumprimentar à distância.
As pessoas conversavam, riam e se iam, deixando-me a sós com Mari. A sós com tanta gente ao redor empunhando cotovelos, cheiros e vozes... mas me sentia sozinha com ela e, pela primeira vez, tomei a iniciativa da conversa:
— Sabe qual o significado de Mariana?
— Não... qual é?
— Quer dizer querida, amada...
— Ultimamente não estou me sentindo muito amada...
— Você sempre será muito amada...
— Pelos meus amigos?
— Não...
Quando diria “por mim”, aquele mesmo pessoal que nos deixou, voltou como o furacão que varreu minha coragem. Chegaram com copos de bebida pra nós duas e muitas gargalhadas vindas de um acontecimento que queriam nos contar.
Não aguentei ficar ali após quase me declarar pra mulher que amo há anos. Senti-me desorientada, sem graça, sem chão. Senti como se eles tivessem retirado de mim a única chance de dizer.
Disfarcei mal e saí da sala desesperada pelo ar da noite lá fora.
Segundos depois senti a mão de Mari sobre meu ombro.
— O que você ia dizer?
Olhei-a e, como naquele dia, quando tivemos aquela conversa, meus olhos vazaram paixão e... amor, amor por ela ter saído de dentro daquela casa e estar ali olhando pra mim luminosa.
— Ia dizer que sou apaixonada por você. Faz tempo... Sempre fui, desde o sexto minuto em que te conheci.
Ela me olhou e seu brilho também vazou, e me abraçou com força. Senti meu coração sorrir e eu sorria também porque ter aquele abraço era tudo o que eu queria ter naquele momento.

Mari Cortez
1-07-2009


Exame de madureza

Um dia a gente cresce.
E a ficha cai. Seja diante do espelho observando um rosto que não parece o seu, seja reparando que as brincadeiras que antes lhe faziam rolar de rir, agora, nem lhe causam cócegas, seja no momento crucial em que você está numa roda animada de adolescentes debatendo entusiasticamente sobre música e, quando questionada sobre suas bandas preferidas, cita três que ninguém daquela turma conhece... É, amiga... o tempo passa.
Provavelmente já passamos ou passaremos por isso, exceto aquele ser que estaciona no ponto 18 de sua linha do tempo e passa uma vida inteira sem admitir que não é mais um aborrecente.
O meu divisor de águas foi uma casa noturna que frequentei durante anos, sempre com a sensação maravilhosa de que era a primeira vez que ia. Era minha balada, meu lugar. Foi lá que me alfabetizei musicalmente, foi lá o berço da minha “educação cultural”: sons, imagens, estilos, papos, bebidas, amigos, danças, confusões, beijos, dúvidas, paixões, decepções, risadas, descobertas, idealismos, flertes, traições... uma infinidade de conteúdos humanísticos indispensáveis para a formação de pessoas legais como nós.
Sentia-me adulta, capaz de decidir minha vida naquele lugar em que eu estava só e com todo mundo. Todos no mesmo barco, “guerreiros da noite”. Incrível estar longe de pai e mãe ou responsável maior de 30 anos. Sentia-me glamorosa com o copo de vodka na mão enquanto viajava ao som de... deixa pra lá. Quando me faltava companhia, arriscava-me por ruas escuras a fim de chegar lá custe o que custasse. Muitas coisas poderiam acontecer na minha ausência, minha presença era imprescindível.
Segunda-feira era o dia ideal para combinar a sexta depois da novela das oito (quem passa na casa de quem?). A terça, quarta e quinta eram dias para aprimoramento do esquema: roupas, telefonemas, armações, quem encontrar, quem evitar...
18, 19, 20, 21 anos na mesma rotina excitante e angustiante... aquele sofrimento para ele/ela ir, para ele/ela me olhar, conversar comigo, me escutar, dançar, ser enlouquecidamente feliz ou triste. Tudo ou nada num mísero fim de semana.
Mas um dia acaba. Não sei se tudo, mas as casas noturnas fecham para darem lugar a outras... ou a postos de gasolina, motéis, igrejas...
Acabou. E aquela turma indissolúvel se dissolveu, e vazou para tantos ralos... Cada ser devidamente “educado” naquele antro do “saber paralelo” tomou seu rumo. Bom ou ruim cada um sabe de si.
Três anos após o fechamento da casa, uma insurreta decidiu convocar os mesmos “guerreiros”, que naquele momento tinham 21, 22, 23, 24... para uma “nova” inauguração (“que bom será reviver aquele tempinho...”).
Fui.
Vesti meu jeans, meu all star, minha blusinha estilosinha e minha bolsa transversal. Torci para reencontrar o mesmo clima, a turma em boa forma para outros fins de semana de “guerra”. Reencontrei-os numa roda em que se destacavam os vestidos de noite, os saltos-altos, as maquiagens pesadas. As roupas mudaram, mas as piadas continuavam as mesmas. “Amadureceram as roupas, mas as ideias...”
Não achei graça.
Eu, ali, vestida como a jovem de 18, 19, 20, 21 anos, ouvindo conversas que já não me atraíam. “Amadureceram as ideias, mas as roupas...”
Caiu a ficha: eu não fazia mais parte daquele universo.
Desculpei-me, virei as costas e saí em direção ao ponto de ônibus mais próximo. Corri para alcançar o último da noite. Cheguei em casa, abri a porta, passei pela sala na ponta dos pés, assim como fazia nos fins de madrugada quando voltava da balada. Tirei minha roupa e mergulhei nos cobertores que já estavam sobre a cama.
Estava feliz, feliz por estar ali, feliz por ter feito o que me deu vontade. Feliz por ter aceitado, numa boa, que uma fase de minha vida havia terminado e outra começado sem que eu nem tivesse reparado.
Dormi bem. Acordei disposta. Vesti meu jeans, meu all star, minha camiseta e fui trabalhar.

Mari Cortez
17-06-2009

Nostalgias

Era segunda metade da década de 1990.
Luísa tinha uns dezoito, dezenove anos, iniciava sua carreira em... ainda não sabia.
Havia terminado o ensino médio e, chocada com a realidade, batalhava incansavelmente pelo emprego que um dia, talvez, lhe desse a chance de cursar faculdade (qualquer uma).
Acordava cedo para trabalhar. Entrava sempre no mesmo ônibus sonolenta, sentava-se próxima à janela, do lado direito, terceiro banco depois da catraca. Vinha vazio, mas transbordava na metade do caminho para o centro da cidade.
Depois que se sentava, passados dois pontos, ela subia...
Luísa não sabia muito bem o que a atraía... nem era tão bonita... Tinha traços finos, nariz um tanto arrebitado, moldurado por bochechas que denunciavam sua luta contra a acne. Ostentava um belo cabelo ondulado e, provavelmente, colorido artificialmente. Era esguia... talvez seu corpo tivesse chamado a atenção de Luísa, talvez o modo como ela agitava as ondas de seu cabelo...
A menina impressionou tanto que a outra passou a esperar ansiosamente pelo ônibus às sete horas de toda manhã. Já não acordava desanimada pela luta diária, ocupava-se mais com sua aparência. Não que fosse feia, mas também não era linda... era comum e isso, muitas vezes, dificultava o desafio de ser notada. E havia outro agravante: Luísa era tímida.
Observava discretamente a menina... estudou e decorou suas expressões, suas roupas, seus gestos. Um dia ela encontrou uma amiga e sentaram-se atrás do banco em que Luísa estava. Luísa apurou os ouvidos e descobriu que a menina tinha nome: Cris. Poderia ser Cristina, Cristiane, Crisantina, não importava... agora o encantamento de Luísa tinha nome.

Um momento realmente especial aconteceu quando, num dia atípico, o ônibus abarrotou e Cris teve de ficar de pé ao lado de Luísa, que estava sentada. A coxa dentro do jeans de Cris roçava, vez ou outra, o ombro dentro da jaqueta de Luísa. Foi o desencadeamento da paixão. Olhou ruborizada para cima e perguntou num fio de voz se Cris não gostaria que ela segurasse sua bolsa, afinal o ônibus estava tão cheio...
Trocaram quatro palavras: obrigada, imagina!, obrigada, de nada!
A voz. Luísa saboreou a voz durante dias.
Porém, o ápice da paixão se deu quando Cris sentou-se ao seu lado.
Luísa sentiu calor, fingiu naturalidade, mexeu em alguns papéis dentro da bolsa, pensou numa possível introdução de conversa... mas pensou tanto que chegou seu ponto no outro lado da cidade. Pediu licença: obrigada, de nada!
Remoeu, desmontou, virou do avesso o acontecimento: talvez ela tenha percebido; talvez ela tenha notado que ela era diferente dos outros naquele ônibus; talvez ela tenha achado Luísa atraente, ou simpática; talvez.
Depois de reconstruir o acontecimento, Luísa decidiu que, se Cris se sentasse no mesmo lugar novamente, introduziria um assunto ou faria um comentário inteligente a respeito do tempo ou do trânsito.
Na manhã seguinte arrumou-se melhor ainda, irritou-se com o cabelo que não ficava do jeito que ela queria. Ensaiou o que diria e a expressão fisionômica que faria... Mas Cris não subiu no ônibus naquela manhã, nem na seguinte, nem na outra...
Luísa procurou por Cris durante muito tempo, em todos os pontos, na ida para seu trabalho e na volta dele.
Nunca mais reviu Cris.

Mudou de emprego, fez faculdade, mudou de emprego, fez pós, mudou de emprego, comprou um carro, mudou-se de cidade, casou-se.

Semana passada estava a passeio na casa de seus pais e foi ao shopping com sua esposa. Entrou numa loja de calçados a fim de comprar um tênis para seu pai. Olhava os modelos do mostruário, pegava-os, rodava-os nas mãos até que alguém veio lhe atender: posso ajudar?
Luísa virou-se e esbarrou na presença e nas palavras de Cris. Não sentiu mais do que uma nostalgia gostosa. Ouviu com carinho a explicação de Cris sobre o melhor modelo de tênis para caminhadas. Luísa levou o que considerou melhor. Foi ao caixa acompanhada por Cris, pagou, olhou-a com um sorriso satisfeito: obrigada, de nada, volte sempre!

Mari Cortez
03-06-2009

No mundo cabem todos nós

Estava conversando esses dias com uma amiga sobre o “boom” homossexual.
Ela, desde sempre muito engraçada e espirituosa, contou-me que, após um jejum amoroso de anos, chamou sua filha adolescente para comunicar-lhe algo muito importante:
— Senta aqui que preciso te contar uma coisa. É importante.
A menina tirou os fones de ouvido, enrolou a goma de mascar mastigada num pedaço de papel de rascunho e foi sentar-se junto à mãe.
— Filha, estou namorando.
Introduziu o assunto esperando alguma reação imediata que não veio, portanto, sentiu-se encorajada em continuar.
— É um homem. Filha, eu sei que nos dias de hoje é estranho, é difícil, mas estou tendo um relacionamento heterossexual.

A cena ilustra um fenômeno moderno: a extinção dos heteros.
Opa! Brincadeira. Óbvio que não.
O que minha amiga quis dizer, de uma maneira muito bem-humorada, é que parece estranho ser “convencional” nos dias de hoje, em que uma parte da população finalmente decidiu mostrar que o “convencional” não atende às necessidades de todos, que somos todos tão iguais e tão diferentes.
Sem entrar profundamente na questão do preconceito (não quero fazer dessas linhas um discurso panfletário), acho que entendi o que ela quis dizer.
De repente, para ela (que viu na TV clipes em que mulheres se beijam, que ouviu dizer que o amigo do amigo apresentou seu namorado numa festa, que passou pela Paulista e viu, de relance, uma das maiores paradas gay do mundo), ser gay é simplesmente uma questão de moda, é febre que a maioria adere como se adere a uma roupa ou a um estilo de música. Depois que passa, volta-se ao “normal”.
Na minha modesta opinião, acho que os heteros têm medo de dividir espaço com pessoas que começam a expor seus gostos, modos e costumes para o mundo, acho que eles pensam que ser gay contagia, que se clipes, outdoors, novelas e paradas continuarem mostrando o quanto os gays são legais, assim como os héteros são, vão todos aderir ao “movimento”.
Não tenham medo. O que passamos no momento não é febre, nem pega. Passamos por uma transição, a transição da visão “convencional” para a visão ampla, diversa. Estamos a caminho da igualdade (mesmo sabendo que para a igualdade ainda há um longo caminho), lugar em que as pessoas amam sem precisar rotular seu amor e sem se preocupar com rótulos que possam colocar nele.
Não se assustem, heteros, no mundo cabem todos nós.

Mari Cortez
11-05-2009
[1] O que é ser convencional? Depende... assunto longo para outra discussão...